Documentos enviados pelo Ministério das Relações Exteriores à CPI da Covid mostram que somente em 24 de fevereiro deste ano o governo federal pediu informações às embaixadas do Brasil no exterior sobre as cláusulas “leoninas” dos contratos com as farmacêuticas Pfizer e Janssen, fabricantes de vacinas.
O governo usou as cláusulas estabelecidas pelas empresas para justificar a demora em fechar contratos com a Pfizer e a Janssen. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid no Senado investiga a razão de o governo ter fechado os contratos somente em 2021, já que as negociações se iniciaram em 2020.
Segundo os documentos enviados pelo Itamaraty à CPI da Covid, aos quais a TV Globo teve acesso, o ministério fez o pedido às embaixadas para avaliar se as cláusulas contratuais impostas pelas farmacêuticas para venda das vacinas eram bem aceitas por outros países.
Ao todo, 18 embaixadas responderam às solicitações entre o final de fevereiro e início de março. As embaixadas consultadas informaram que a maioria dos países aceitou as exigências.
Em fevereiro, a Pfizer já havia feito seis ofertas para a venda da vacina ao Brasil, três em agosto, duas em novembro e uma no dia 15 de fevereiro. Os contratos com a Pfizer e a Janssen foram assinados em 19 de março.
A cúpula da CPI entende que a vacinação no Brasil já estaria mais adiantada se o governo tivesse aceitado as propostas antes.
O pedido do Itamaraty foi enviado para as embaixadas em Berlim (Alemanha), Berna (Suíça), Camberra (Austrália), Jacarta (Indonésia), Lisboa (Portugal), Londres (Inglaterra), Cidade do México (México), Ottawa (Canadá), Paris (França), Pretória (África do Sul), Riade (Arábia Saudita), Santiago (Chile), São José (Costa Rica), Seul (Coreia do Sul), Cidade de Singapura (Singapura), Tel Aviv (Israel), Tóquio (Japão) e Washington (EUA).
No pedido, o Itamaraty afirma que as negociações do Ministério da Saúde com a Janssen e a Pfizer vinham “enfrentando obstáculos, decorrentes de algumas cláusulas contratuais”.
As cláusulas consideradas “leoninas” pelo governo foram:
- Alienação de ativos do país no exterior em benefício da farmacêutica como garantia de pagamento;
- Definição de uma câmara arbitral em Nova York para resolução de eventuais litígios entre a empresa e o governo;
- Assunção da responsabilidade por danos da vacina pelo governo federal.
Cláusula de responsabilidade
As respostas ao pedido do Itamaraty revelaram que a maior parte dos países aceitou as cláusulas ditas “leoninas” pelo governo brasileiro.
A embaixada brasileira em Washington respondeu que o entrave das cláusulas tinha sido superado no início da pandemia, em março de 2020.
Consta ainda na resposta que existe uma legislação nos Estados Unidos que autoriza o secretário de saúde, em casos de crise de saúde, a declarar empresa fornecedora imune de responsabilidade legal por um produto.
“Esse mecanismo foi ativado em março de 2020 e se aplica aos casos das fornecedoras ao governo americano de vacina contra a Covid-19. Dessa forma, a empresa não pode ser processada por danos causados por sua vacina e goza de imunidade neste ponto, exceto em casos de ‘má conduta dolosa””, afirmou.
A embaixada do Reino Unido também disse que concordava com a cláusula da responsabilização e afirmou que era uma “prática muito aceita” no governo britânico, “ainda mais em tempos de pandemia”.
“No Reino Unido, prevê-se imunidade para farmacêuticas e para os profissionais de saúde por eventuais efeitos colaterais que resultem do emprego de vacinas sob uso emergencial. Como disse um interlocutor do Posto, ‘é prática há muito aceita pelo governo britânico’ — ainda mais em tempos de pandemia, em que ‘precisávamos de vacinas com velocidade e em quantidade impressionantes'”,dizia o documento.
A embaixada brasileira na União Europeia apontou que a diferença em relação ao proposto ao Brasil era pequena.
“Notam-se poucas diferenças nas disposições sobre a assunção de responsabilidade civil por eventuais danos colaterais das vacinas a terceiras partes”, afirmou.
De acordo com informações transmitidas pelo Itamaraty ao governo federal, a Austrália também demonstrou concordar com a responsabilização.
“Concordou com o mecanismo de custear eventuais indenizações devido a ‘necessidade de compartilhar adequadamente os riscos associados a obtenção de acesso antecipado a uma vacina'”.
Em sua resposta, o Canadá informou que o país concordou com os contratos e que isso não era “diferente de qualquer outro país neste mundo”.
“A ministra [de Compras Governamentais] confirmou ainda que os contratos de vacinas incluem cláusulas de indenização e esclareceu que o Canadá ‘(is) definitely not any different tant any other country in this world’ [definitivamente não é diferente de qualquer outro país neste mundo]”.
O ministro da Saúde do Chile informou à embaixada que buscava aprovar uma legislação para permitir a responsabilidade por eventuais reações adversas. Legislação semelhante já havia sido aprovada pelo Japão, segundo informou a embaixada do Brasil em Tóquio.
A embaixada no México informou que “há pelo menos dois fatores a indicar que o México teria aceitado os termos impostos pelas farmacêuticas”’.
“O primeiro é a resistência a revelar qualquer detalhe sobre os contratos, e o segundo é o tempo recorde em que o país fechou tais contratos, o que posicionou o México entre os dez primeiros países a iniciar campanha de vacinação”, consta no documento.
Outras embaixadas, como a de Riade, na Arábia Saudita, não conseguiram obter informações conclusivas sobre o tema junto às autoridades locais.
Indonésia similar ao Brasil
A embaixada do Brasil em Jacarta, na Indonésia, foi a única que apontou que as cláusulas impostas pela empresa estavam dificultando o fechamento do contrato.
Segundo o informe, a Indonésia apontou como principais obstáculos para a conclusão das negociações as exigência contratuais e dificuldades logísticas, por conta da necessidade de armazenamento das vacinas em temperaturas muito baixas.
O documento diz ainda que o responsável pela aquisição de vacinas no país afirmou que “referindo-se à exigência da Pfizer de não se responsabilizar civilmente em eventuais demandas judiciais decorrentes do uso dos imunizantes, que o governo não estaria disposto a “passar um cheque em branco” à farmacêutica”.
Câmara arbitral
A cláusula foi aceita em outros países, como Canadá. A embaixada de Seul apontou que “não foi informado onde seria a arbitragem”, mas que foi indicado ser “prática muito comum nesse tipo de contrato” que mecanismos de arbitragem sejam constituídos nas cidades-sede das respectivas empresas.
No caso da União Europeia, a negociação permitiu a alteração para a escolha das cortes de Bruxelas, na Bélgica para resolver litígios entre as partes contratantes.
Fundo garantidor
Essa exigência não foi feita a todos os países. Reino Unido e Coreia do Sul afirmaram que não houve essa exigência contratual — mesmo caso da União Europeia, que explicou ter feito pagamento antecipado pelas vacinas.
“A ausência de previsão de alienação de ativos no exterior para garantir o pagamento dos contratos justifica-se, ao menos em parte, no caso da União Europeia, pela prática generalizada de pagamentos antecipados pela CE às farmacêuticas. Esses “upfront payments” são uma forma de financiar custos de produção e diminuir o risco em encomendas em larga escala”, informou a embaixada.
G1