A Justiça Federal negou um pedido feito em ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF) para rever uma decisão de primeira instância que fixou uma matriz de danos e implantou um sistema indenizatório referente ao rompimento da barragem da mineradora Samarco, ocorrido em novembro de 2015. 

Por considerar que houve irregularidades processuais que prejudicaram a coletividade e que alguns valores estabelecidos foram baixos, o MPF queria que as indenizações que estão sendo pagas fossem consideradas apenas como um piso mínimo. A desembargadora Daniele Maranhão Costa, no entanto, discordou das alegações apresentadas e negou pedido de liminar. O mérito do assunto ainda será discutido.

“A adesão à matriz de danos objeto da insurgência é facultativa e individual, reservando aos atingidos a opção pelo sistema antes vigente junto à Fundação Renova ou mesmo de ajuizamento de ação individual na justiça local, onde se poderá reclamar pela comprovação específica e individualizada dos danos”, registrou a magistrada em decisão proferida no dia 12 de fevereiro e divulgada ontem (23). Segundo ela, o novo sistema implantado oferece um fluxo de indenização mais direto, simplificado e flexibilizado. 

A barragem que se rompeu integrava o Complexo Minerário de Germano, em Mariana (MG). Na tragédia, cerca de 39 milhões de metros cúbicos de rejeito escoaram para o meio ambiente, causando impactos socioambentais em dezenas de municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo situados ao longo da Bacia do Rio Doce. Dezenove pessoas morreram. Um termo de transação e ajustamento de conduta (TTAC) firmado em março de 2016 levou à criação da Fundação Renova, entidade responsável por gerir a reparação de danos. O acordo foi assinado pelo governo federal, pelos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, pela Samarco e por suas acionistas Vale e BHP Billiton. 

Quase 5 anos após a tragédia, o sistema indenizatório para categorias que ainda não tinha sido reconhecidas como atingidas começou a ser implantado a partir de uma decisão de primeira instância do juiz Mário de Paula Franco Júnior. Em julho do ano passado, ele reconheceu danos sofridos por trabalhadores informais da cidade de Baixo Guandu (ES) e Naque (MG).

Desde então, o magistrado já concedeu sentenças semelhantes abrangendo moradores de outras 13 cidades: Aimorés (MG), Itueta (MG), Governador Valadares (MG), Santana do Paraíso (MG), Bom Jesus do Galho (MG), Belo Oriente (MG), Periquito (MG), Rio Doce (MG), Aracruz (ES), Conceição da Barra (ES), Linhares (ES), São Mateus (ES) e Colatina (ES). Ainda estão em tramitação outros processos com pleitos parecidos.

Entre os indenizados, estão trabalhadores informais tais como revendedores de pescado, comerciantes, artesãos, agricultores, carroceiros, areeiros, ilheiros e lavadeiras. Eles devem receber quantias que variam entre R$ 54 mil e R$ 161,3 mil. São valores referentes a danos materiais e morais e lucros cessantes, isto é, os ganhos financeiros que o trabalhador deixou de obter. Também foram arbitrados montantes variados para moradores que pescavam para subsistência, para donos de pousadas e restaurantes informais e para proprietários e tripulantes de embarcações empregadas na pesca profissional.

A decisão do juiz Mário de Paula, referendada pela desembargadora Daniele, autorizou a Fundação Renova a criar um sistema eletrônico. Através dele, advogados ou defensores públicos que representam cada atingido devem requisitar a indenização, conforme os valores e prazos definidos nas sentenças. “A velocidade de adesão cresce a cada dia. O valor ultrapassou R$ 435 milhões”, informa a Fundação Renova. Em janeiro, a entidade já havia anunciado ter chegado a 5 mil acordos através desse sistema, o que representou um aumento de quase 50% no número de indenizados desde 2015.

Controvérsia

O MPF, no entanto, viu irregularidades nesse processo e moveu ação após a publicação da primeira sentença, referente à Baixo Guandu. Ele pediu que a exigência de assinação do termo de quitação integral pelos assinados seja revogada e que os pagamentos sejam considerados apenas uma parcela da indenização, cujo cálculo final ficaria pendente. A argumentação se concentra em torno de cinco pontos centrais: a tramitação em sigilo, a ausência de intimação do próprio MPF, a ilegitimidade da comissão de atingidos, o baixo patamar dos valores e os indícios de decisão combinada.

Com a decretação do sigilo, o MPF afirma que só teve acesso aos autos após a publicação da sentença e vê a situação em desacordo com a Constituição Federal, a qual estabelece sua prévia intimação em causas que envolvem direitos coletivos. A desembargadora Daniele Maranhão Costa, no entanto, avaliou que o caso se enquadra na categoria de direitos individuais.

“As tratativas são direcionadas a definir a documentação a ser apresentada, ao prazo para cadastro e à quantificação de valores a serem recebidos individualmente pelos atingidos, cuja esfera de disponibilidade é de cada um daqueles que voluntariamente aderirem à matriz de danos fixada. Portanto, nesta análise inicial, entendo não haver nulidade por ter tramitado o procedimento sob sigilo e sem a participação do Ministério Público Federal”, escreveu.

Outra crítica do MPF diz respeito à fundação da Comissão de Atingidos de Baixo Guandu, que teria se dado a partir de nove moradores que registraram a entidade em cartório, sem que houvesse nenhuma assembleia ou processo público capaz de conferir legitimidade. A instituição afirma ainda que, com o processo em sigilo, outros atingidos também foram privados de tomarem conhecimento e se manifestarem.

Daniele também discordou desse ponto. “As comissões locais possuem tanto legitimidade quanto melhor representam os atingidos, pois compostas por pessoas da comunidade local que também foram impactadas, sem deixar de esquecer um dado muito importante que se trata da adesão voluntária e individual de cada atingido à plataforma criada”, escreveu.

Valores

Ao classificar de irrisórios os valores fixados pelo juiz de primeira instância, o MPF havia feito comparações envolvendo os R$10 mil definidos especificamente para danos morais. “Essa quantia é rotineiramente atribuída nos tribunais brasileiros, em virtude de cancelamentos de voos ou extravios de bagagem. Beira o ridículo pretender que esse mesmo valor seja devido, mediante quitação integral, a pessoas que tiveram suas vidas destroçadas por um dos maiores desastres da história do país”, registra a ação.

O MPF viu ainda falta de razoabilidade no valor dos honorários de sucumbência arbitrados em favor da advogada da Comissão de Atingidos de Baixo Guandu. Também manifestou estranheza com o comportamento das mineradoras, que não recorreram da sentença e teriam se apressado em fazer os pagamentos. Para o MPF, esse comportamento gera uma suspeita de lide simulada, isto é, a ação judicial poderia ter sido movida após ter sido combinada entre advogados de ambas as partes. A argumentação também foi repelida pela desembargadora, que não viu problemas nos valores fixados.

“A decisão, em sua aparência, somente tem por escopo prestigiar uma rápida solução para a controvérsia relativa ao cadastramento e correspondente indenização dos atingidos, corrigindo um erro que já vem se perpetuando pelo lapso temporal transcorrido desde a ocorrência. Mais uma vez, não se pode partir da presunção de que todos estejam arquitetados para prejudicar os atingidos”, escreveu Daniele. “Entendo razoável os honorários advocatícios arbitrados, comparativamente à abrangência da discussão”, acrescentou.

Auxílio emergencial

Em outra ação que ainda aguarda julgamento, o MPF também questiona a paralisação do pagamento do auxílio emergencial mensal aos atingidos que estão sendo indenizados por meio do novo sistema. Trata-se de um benefício concedido pelo TTAC às pessoas que tiveram suas atividades econômicas interrompidas em decorrência da tragédia. A quantia é de um salário mínimo, acrescido de 20% para cada dependente, além do valor de uma cesta básica. Em 2019, uma decisão da própria Daniele Maranhão adotou o entendimento de que esses valores não se confundem com as indenizações individuais, que devem ser calculadas separadamente. 

“Os temas da indenização e do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) dizem respeito a eixos temáticos distintos do TTAC. Enquanto as indenizações pertencem ao âmbito de organização social, o pagamento de AFE refere-se à manutenção econômica. São, assim, obrigações distintas e, inclusive, tratadas em programas igualmente diversos. A única forma de interromper o AFE é por meio do restabelecimento das condições originárias para o exercício das atividades produtivas e/ou econômicas, o que ainda não ocorreu”, avalia do MPF.

Para a Fundação Renova, o pagamento dos valores fixados pela Justiça asseguram a quitação total, incluindo assim o encerramento dos repasses do Auxílio Financeiro Emergencial. “A conclusão do processo de indenização pelos danos provocados pelo rompimento da barragem tem como objetivo dar resposta definitiva aos atingidos”, diz a entidade.

Agência Brasil