Mais de quatro meses após o início a vacinação contra a Covid-19, os dados mostram uma grande disparidade no ritmo da imunização entre os estados brasileiros. O percentual da população vacinada com uma dose nos locais mais avançados, Mato Grosso do Sul (27,8%) e Rio Grande do Sul (27%), é mais que o dobro do registrado nos que estão mais atrasados, Rondônia (12,8%) e Roraima (13,2%).

A desigualdade se repete na segunda dose, com Rio Grande do Sul (12,9%), Mato Grosso do Sul (12,7%) e São Paulo (12,2%) no topo e Acre (5,9%) e Amapá (6,8%) no fim da lista.

A epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Ethel Maciel afirma que os estados da região Norte têm características que podem dificultar a vacinação.

“A dificuldade é que a população é muito espalhada. A gente tem dificuldade de acesso a algumas populações indígenas, ribeirinhas. A equipe de saúde precisa viajar, se deslocar muito”, afirma.

Esse foi o argumento apresentado pela Secretaria de Saúde do Amazonas para justificar o baixo percentual em relação a outras unidades da federação. Mesmo sendo o estado priorizado no início da vacinação por conta do colapso no sistema de saúde, foram aplicadas apenas 58% das 2.214.600 doses disponíveis desde o início da campanha de imunização, o 3º menor percentual do país.

“Estamos enfrentando alguns desafios em relação à distribuição. O principal são as enchentes nos municípios, onde é preciso realocar as salas de vacina, e a dificuldade de acesso às comunidades mais distantes, principalmente que ainda estamos vacinando os ribeirinhos”, diz Josi Dias, do Programa Nacional de Imunização (PNI) no Amazonas, que é coordenado pela Fundação de Vigilância em Saúde do estado.

Além de ter as menores porcentagens de vacinação da população, a região Norte também é a que apresenta os piores indicadores de aplicação em relação a doses recebidas.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

Segundo o infectologista da Fiocruz Julio Croda, a lógica do Ministério da Saúde é que, quanto mais rápido se aplica as doses disponíveis e se informa o avanço no Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), mais rápido se tem acesso a mais doses pelo Ministério da Saúde, dentro da quantidade prevista pelo Plano Nacional de Imunização.

“O Ministério da Saúde libera mais doses se os estados estiverem utilizando e reportando no sistema.Tem a ver com utilizar todas as doses e solicitar mais doses”, explica.

Rio de Janeiro

Em situação um pouco pior que o Amazonas está o Rio de Janeiro: é o segundo estado que menos aplica as vacinas recebidas em todo o país, atrás apenas de Roraima. Além disso, é a única unidade da federação do Sudeste entre as 10 que menos vacinam sua população com a primeira e a segunda dose. Em comparação, SP, MG e ES figuram no topo da tabela.

Para o médico epidemiologista José Cássio de Moraes, da Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), não é surpresa o mau desempenho do estado.

“O Rio passa por diversas crises políticas, impeachment do governador, ex-governadores presos, secretário de Saúde preso. Então, como é que você consegue fazer uma administração adequada com todos esses problemas?”, questiona o epidemiologista. “E se olhar o histórico, na epidemia da dengue, há dez anos, já foi necessária uma intervenção”, relembra.

“E não são só problemas de saúde. Tem o problema da segurança. Áreas de difícil acesso, controladas por criminosos. Então, são fatores bastante complexos que fazem com que haja dificuldade para conseguir executar as tarefas, de atendimento e de vacinação.”

A secretaria de Saúde do RJ atribui o atraso à dinâmica dos municípios e diz que, “mesmo que seja de competência dos municípios a aplicação e a informação das doses aplicadas”, envia rotineiramente ao Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Defensoria Pública planilhas com os quantitativos atualizados de doses distribuídas e aplicadas por cidades.

Outras secretarias de Saúde dos estados com os piores índices de aplicação das vacinas foram procuradas pelo G1 e também apontaram a falta de preenchimento pelos municípios como uma das causas dos baixos índices de aplicação.

Negacionismo

No caso de Rondônia, que hoje é o estado que menos vacinou sua população proporcionalmente com a primeira e com a segunda dose, o desafio inclui a falta de doses e, principalmente, a falta de interesse da população, segundo Ana Lúcia Escobar, professora de medicina da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e membro do Comitê Consultivo da UNIR sobre Covid-19.

“Aqui tem o problema do negacionismo. Muitas pessoas acham que não precisa [se vacinar], que a vacina não serve para nada. E a campanha que a gente tem hoje é voltada para criança, absolutamente ineficaz, e não convence as pessoas que realmente precisam se vacinar. É incrível, porque somos o 2° estado com maior mortalidade no país, e estamos com taxas de ocupação dos leitos altíssimos”, avalia Ana Lúcia.

Relatório publicado na quinta (27) aponta que Rondônia tem a segunda maior taxa de mortes por Covid-19 em todo o país, atrás apenas do Amazonas. O material foi produzido pelo Tribunal de Contas de Estado (TCE) e pela Controladoria-Geral da União (CGU) com dados coletados do início da pandemia até o final de abril.

Saúde básica

Outro problema que afeta a distribuição de vacinas é a estrutura de saúde básica, conforme explica o médico epidemiologista José Cássio de Moraes, da Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

“Em alguns estados, existem problemas de base que já dificultam”, afirma. “A estrutura de atenção básica, a própria administração. Por exemplo, Roraima, quando teve epidemia de sarampo, houve a necessidade de intervenção do Ministério da Saúde. Isso já mostra uma fragilidade.”

No caso da população com comorbidades, que já começou a ser vacinada na maioria dos estados, há outras dificuldades. “Pode ser difícil, por exemplo, chegar com um laudo ou com uma prescrição dos medicamentos que toma. Essas determinações para receber a vacina criam uma barreira, principalmente, para populações que têm maior dificuldade ou menor acesso ao serviço de saúde”, avalia Ethel.

Essa dificuldade se expressa nas diferenças entre os vizinhos Mato Grosso e Mato Grosso do Sul: enquanto o primeiro está entre os 10 com menor proporção de população vacinada, o vizinho do sul lidera o ranking de aplicação da 1ª e da 2ª dose.

Segundo Julio Croda, infectologista que também é professor na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, a chave para entender a diferença é a estrutura e a estratégia de saúde família.

“O cenário é oposto porque em Mato Grosso existe uma menor cobertura de estratégia de saúde da família [do que no MS] e, de alguma forma, menor articulação dessas unidades, no sentido de disponibilização de vacinas adequadamente. É importante ter vacina disponível em muitos locais, principalmente para atingir a população mais pobre. E a saúde da família é a responsável pela busca ativa de idosos nas diferentes regiões geográficas”, compara Croda.

Outro ponto é a articulação entre governo estadual e governos municipais no controle das doses. Segundo o secretário de Saúde do Mato Grosso do Sul, Geraldo Resende, o estado faz uma cobrança diária sobre a aplicação das doses disponíveis e sobre o preenchimento das informações tanto no sistema estadual quanto no SI-PNI, do Ministério da Saúde.

“Criamos grupos de secretários municipais para monitorar diariamente a aplicação. Usamos a estrutura da Secretaria de Justiça para enviar doses para municípios mais distantes da capital, e algumas cidades buscam as doses em Campo Grande. A ideia é que apliquem todas as doses assim que as recebem”, explica.

Segundo Resende, o estado também criou uma logística para que as doses cheguem aos municípios no máximo em 12 horas após a entrega pelo Ministério da Saúde.

Em nota, a secretaria de Saúde do Mato Grosso afirma que “a aplicação da vacina e a alimentação do sistema oficial de vacinação são responsabilidade das gestões municipais, que podem esclarecer a situação de cobertura vacinal”, e que “o estado prioriza o transporte aéreo para que haja distribuição das doses em, no máximo, 48 horas”.

Disputas políticas

Outro entrave são disputas políticas internas nos estados, que acabam resvalando na área de saúde, explica José Cássio.

“Existem disputas políticas entre grupos. Às vezes a prefeitura é governada por um partido político e o estado por outro, e não existe uma integração. Há déficit de estrutura, de pessoal, e essas disputas já existiam. Isso se torna mais intenso com a pandemia. Se já não fazia corretamente, com qualidade, fica pior ainda”, avalia o epidemiologista da Abrasco.

G1