Superlotação em penitenciárias é uma realidade consolidada no sistema prisional brasileiro. Imagens de pessoas em recintos pequenos para abriga-las acabam, portanto, se mostrando mais perto da realidade do que cotidianamente se imagina. Em 2020, 67,5% foi o índice de sobrecarga de encarcerados calculado pelo Raio X do Sistema Prisional. Em números, seriam mais de 709,2 mil pessoas que ocupam vagas reservadas à apenas 423,3 mil.

O estudo, que é feito anualmente desde 2018, é levantado pelo portal G1 e mostra que o ano de início da pandemia obteve certa redução na superlotação deste 2019. Isso, porque a porcentagem estimada era de 69,3% (sendo 704 mil presos para 415 mil vagas). `Em Goiás, por exemplo, a superlotação supera a marca de 85,4%, de acordo com o mesmo estudo (que expõe a quantidade de 21,9 mil pessoas em relação a 11,8 vagas). A Diretoria Geral de Administração Penitenciária (DGAP) do Estado de Goiás, entretanto, atualizou este dado, ao informar que a quantidade de encarcerados de 2020, na verdade, era de 22,6 mil. Em 2021, foi registrada a queda para 22 mil. O número de vagas ofertadas não foi informado.

Apesar da redução, é inegável que a infraestrutura existente atualmente no Brasil não é suficiente para suprir a pessoas que estão e que são encarceradas no país. Mesmo assim, com o coronavírus, além da manutenção desta condição, diversas outras mudanças, assim como em todos os demais contextos, tiveram que ser diariamente adotadas para que a realidade das pessoas privadas de liberdade se tornasse compatível com a de combate do vírus que tirou a vida de mais de 3,4 milhões de pessoas, de acordo com dados atualizados e disponibilizados pela Johns Hopkins University of Medicine, até a divulgação desta reportagem.

No Brasil, das 14,4 milhões de pessoas infectadas, 448,2 mil perderam a vida. No caso da população carcerária, a situação não se difere. Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que nos primeiros 67 dias de 2021 foram registradas 58 mortes de trabalhadores das forças de segurança e de pessoas privadas de liberdade, por coronavírus. Isso significaria, portanto, uma morte deste grupo a cada 27 horas – representando aumento de 190% em mortes por Covid-19 (de presos ou funcionários) quando comparado a novembro e dezembro de 2020.

Centro de triagem do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, instalado em 2014. | Foto: Governo de Goiás

Em Goiás, entretanto, este número se mantém relativamente baixo, ao comparar com os números nacionais. Até o último balanço semanal publicado pela DGAP do Estado de Goiás, no dia 11 de maio de 2021, dos 785 servidores contaminados, três foram a óbito. Já em relação aos presos, o número de casos confirmados da doença sobe para 2.270 pessoas e o de mortes para oito. Nacionalmente, levantamento do G1 estima que pelo menos 437 presos e servidores do sistema prisional faleceram em decorrência da Covid-19 no Brasil desde março de 2020.

Diretor-geral adjunto da DGAP, Aristóteles Camilo. | Foto: Arquivo pessoal

Desse modo, assim como em todos os países do mundo, a adoção de medidas protetivas se tornou comum, o que fez com que a disposição de álcool gel, outras medidas de higienização e a disponibilização de máscaras faciais de proteção se fizessem necessárias. O diretor-geral adjunto da DGAP, Aristóteles Camilo, explica que a fiscalização das ações implementadas é realizada diariamente, garantindo sua eficácia. Ao realizar novas prisões, em um centro de triagem, é feita a testagem, e no caso da detecção do Sars-CoV-2, é implementado o isolamento do novo encarcerado antes de redirecioná-lo à cela.

Também foram suspensas as visitas de familiares e advogados – que ainda não retornaram ao funcionamento presencial, somente virtual, por videoconferências – e, por uma certa quantidade de tempo, pausadas as atividades dos programas de reintegração, que voltam gradualmente desde o fim de 2020. Além das alterações consideradas como um ‘mal necessário’ ao enfrentamento à pandemia, o agravamento das violações de direitos humanos no sistema prisional se tornou pauta de diversas discussões científicas, iniciando-se com a própria denúncia do país na Organização das Nações Unidas (ONU) em junho de 2020 pela precariedade de medidas de combate a doenças que estavam sendo implementadas até então.

Advogado criminalista e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Seção Goiás da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), Roberto Serra. | Foto: Arquivo pessoal




Pejorativamente – e de forma errônea – chamado de “direitos de bandido”, os Direitos Humanos, para o advogado criminalista e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Seção Goiás da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), Roberto Serra, podem ser resumidos no conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar a vida do ser humano baseada na liberdade, igualdade e na dignidade.

“Os direitos humanos são direitos que toda pessoa humana tem, independente do que seja, tenha, pensa ou faça. Os direitos humanos não são atributos exclusivos de pessoas reputadas honestas, e sem antecedentes criminais. A ideia principal dos direitos humanos é que toda pessoa tem certos direitos que o Estado não pode tirar nem deixar de conceder: vida, trabalho, remuneração digna, aposentadoria, liberdade de locomoção, de manifestação de pensamento, entre outros”, esclarece.

A estigmatização dos Direitos Humanos, contudo, de acordo com o advogado, faz com que sua violação seja cada vez mais frequente e normalizada. “Várias pessoas, principalmente agentes estatais encarregados da segurança pública, costumam acusar os defensores dos direitos humanos de atrapalharem o seu trabalho. Argumenta-se, por exemplo, que os direitos humanos deveriam servir para “humanos direitos”, ou seja, deveriam se destinar às pessoas “honestas”, e aos agentes da lei. Marginais, segundo eles, não deveriam ter consagrados os mesmos direitos humanos. Para eles, os defensores dos direitos humanos priorizam a “proteção dos bandidos”, e não os “direitos humanos da vítima” ou do policial”, completa.

Para o presidente do Sindicato dos Policiais Penais do Estado de Goiás (Sinsep-GO), Maxsuell Miranda, a prioridade é o respeito à Lei de Execução Penal (de nº 7.210/84), que efetiva as disposições de sentença ou decisão criminal e visa proporcionar condições para uma harmônica integração social do condenado e do internado. “Sempre buscamos respeitar os direitos do preso. Nós como policiais penais somos o Estado, e o Estado é impessoal”, declara. A realidade, no entanto, nem sempre é essa.

De forma prática, Roberto exemplifica que, por exemplo, que apesar de, em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) ter considerado a situação prisional no país um “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do poder público, a crise sanitária agravou este cenário. “Nada evoluiu até o presente momento, permanecendo o estado caótico do sistema prisional brasileiro. De uma maneira geral, em Goiás, a ocorrência de maus tratos e abusos físicos, a péssima qualidade da alimentação, as restrições a visitas de familiares, a dificuldade no acesso a medicamentos e atendimento médico, e as péssimas instalações, foram, basicamente, as principais reclamações à OAB-GO”, destacou o advogado.

“A título de exemplo, de fevereiro de 2020 a abril deste ano, houve cerca de 16 reuniões com representes da Diretoria de Administração Penitenciária (DGPA), 3 vistorias da Comissão de Direitos Humanos, juntamente com outras comissões temáticas, a impetração de 2 mandados de segurança coletivos, 2 ações civis públicas, dentre outras medidas. Ao todo, foram mais de 30 medidas da OAB voltadas para a defesa dos direitos da advocacia criminal e dos presos do sistema prisional goiano”, descreve Roberto.

Forças de segurança goiana

A situação dos policiais penais, no que tange as condições trabalhistas, também não pode ser denominada fácil e pode ser considerada parte do problema, de acordo com o presidente do Sindicato dos Policiais Penais do Estado de Goiás (Sinsep-GO), Maxsuell Miranda. Ele menciona, por exemplo, a falta de reajuste salarial que afeta o dia a dia e abala a auto estima do servidor há seis anos. Com a crise sanitária, mesmo que a carga horária de trabalho tenha permanecido a mesma, a intensidade das atividades realizadas aumentou e, consequentemente, o estresse também.

Como o trabalho desses servidores depende da condição dos encarcerados, quando a tensão entre eles aumenta, a atuação consequentemente se intensifica. E com a pandemia, mesmo que o diretor-geral adjunto da DGAP, Aristóteles Camilo, não enxergue esse comportamento, o presidente da Sinsep-GO explica que, com a crise sanitária, os presos estão mais agitados e – com a falta de visitas às unidades prisionais – passaram a inovar no modo em que se leva objetos ilegais para dentro do presídio. “Nos últimos 40 dias foram apreendidos oito drones no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Eles estavam arremessando celulares através de drones. Um super drone, inclusive, que foi apreendido, tinha valor de mais de R$ 40 mil”, detalha Maxsuell.

Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. | Foto: Reprodução

Princípios de motim também não são raros, segundo o policial penal e presidente da Sinsep-GO, o que preocupa os servidores. Ele acredita que sua constante ocorrência se dá, principalmente, pela suspensão da visitação dos familiares, que anteriormente à pandemia era feita de forma semanal. Hoje, pela pouca quantidade de servidores públicos de segurança, não é possível fazer com que as videoconferências sejam realizadas com a mesma frequência. “Para se ter uma ideia, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) recomenda que seja um policial a cada cinco presos, a nossa realidade em Goiás é de um policial para um grupo de 80 a 100 pessoas privadas de liberdade. Apesar de o governador Ronaldo Caiado estar chamando para a atuação os aprovados no concurso de 2019, hoje o déficit de policiais penais no sistema prisional goiano é de 2,8 mil a 3 mil”, justifica.

Atrelado a isso, Maxsuell ainda ressalta o abalo à saúde mental, que por vezes é visto devido ao medo pela contaminação com o novo coronavírus e, principalmente, pela preocupação em ser infectado e levar a doença a outros membros da família – situação se acabou se tornando recorrente no cotidiano policial. Mesmo com a imunização de quase toda a força de segurança do Estado de Goiás, a aflição persiste.

Ações de respeito e empatia

Para que toda essa situação, que acaba se tornando um ciclo insustentável e interminável, ao considerar a longevidade em que persiste, o advogado criminalista e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Seção Goiás da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), Roberto Serra, ressalta a necessidade da empatia, do respeito e da conscientização. “É preciso entender que quem aplaude a violência e o desrespeito aos direitos humanos hoje, pode deles tornar-se vítima amanhã. Aliás, qualquer um de nós pode errar, e esse erro caracterizar um crime, como no caso de um acidente de trânsito, uma briga ou um xingamento”, diz.

Para ele, é somente a partir desse ato de empatia que será possível compreender que não se pode separar a sociedade em ‘castas’ ou grupos, de modo a qualificar pessoas que cometem crime ou criminosos de pessoas imunes aos direitos humanos. “Todos nós, pelo simples fato de ostentarmos a condição de humanos, somos titulares de direitos mínimos. E havendo crime, caberá ao Estado punir o criminoso, dentro, por óbvio, de parâmetros limitadores da arbitrariedade e da prepotência. A sociedade não é dividida entre pessoas boas e pessoas más; muito menos entre “cidadãos honestos” e “bandidos desonestos”. É preciso um basta nesse maniqueísmo. Quem comete um crime, não se torna um outro ser, mas permanece humano, com todos os direitos fundamentais compatíveis com seu atual estado. Embora possa ter a sua liberdade cerceada, o criminoso não poderá perder a dignidade, a honra, a garantia da sua integridade física, o direito à vida ou outros direitos”, opina o advogado.  

Pesidente do Sindicato dos Policiais Penais do Estado de Goiás (Sinsep-GO), Maxsuell Miranda. | Foto: Arquivo pessoal

Já o presidente do Sindicato dos Policiais Penais do Estado de Goiás (Sinsep-GO), Maxsuell Miranda, além de mencionar a importância do reajuste salarial dos policiais penais, para a melhora da qualidade do serviço prestado, e da abertura de novos concursos, sugere a construção de novos presídios que acarretasse uma melhor redistribuição dos presos e, consequentemente, o respeito ao que a LEP (Lei de Execução Penal) preconiza. “Hoje as cadeias superlotadas e isso, além de prejudicar o preço, sobrecarrega o policial que está ali trabalhando”, complementa.

Ações como essas, segundo a Diretoria Geral de Administração Penitenciária (DGAP), vem sendo discutidas. Na última quarta-feira, 19, por exemplo, foi feita reunião entre os servidores onde se anunciou a previsão de abertura de novas 3,7 mil novas vagas no sistema prisional goiano. De acordo com a DGAP, a primeira parte do projeto foca na abertura de 1.708 vagas no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia até o final deste ano, que será seguido pela criação de novas vagas nas unidades de Rio Verde e Luziânia – além da construção de novos estabelecimentos penitenciários nas cidades de Caldas Novas, Formosa e Goianésia.

A DGAP ainda cita o investimento em projetos de ressocialização em parceria com órgãos públicos, prefeituras, com o Poder Judiciário, Ministério Público e empresas privadas. Dentre elas, estão a confecção de roupas, de máscaras de proteção facial e de uniformes, produção de blocos de cimento, serralheria, hortas, construção civil, fabricação de chinelos e de abafadores, produção de bolas e a transformação de bicicletas em cadeiras de rodas, entre materiais. O diretor-geral adjunto da DGAP, Aristóteles Camilo, ainda cita o incentivo à educação e à alfabetização, através da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que é adotado nas prisões.

 “A reintegração social é uma das áreas que refletem com maior impacto em maiores chances de reinserção social do preso após o cárcere”, diz o diretor-geral de Administração Penitenciária de Goiás, tenente-coronel Franz Rasmussen, em uma publicação do portal da DGAP.

Faixada do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. | Foto: DGAP

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