Em 13 de abril de 1961, o correspondente especial do jornal soviético Izvestia, Georgi Ostroumov, se encontrava com o primeiro homem enviado ao espaço.

Um dia depois de retornar à Terra, o “piloto espacial” Yuri Gagarin estava, conforme relatou Ostroumov, “animado, forte e saudável… um sorriso maravilhoso ilumina seu rosto”.

“De vez em quando, covinhas aparecem em suas bochechas”, escreveu Ostroumov.

“Ele aprecia a curiosidade com que é pressionado pelos detalhes do que viu e vivenciou durante a uma hora e meia que passou fora da Terra.”

Em um livreto publicado para comemorar a façanha, Soviet Man in Space, a entrevista com Gagarin continua por várias páginas.

O cosmonauta descreve a experiência: “O horizonte apresenta uma visão única e extraordinariamente bela.”

E enaltece a União Soviética: “Dedico meu voo a… todo o nosso povo que está marchando na vanguarda da humanidade e construindo uma nova sociedade”.

Em um sistema político em que o jornalismo tende à propaganda, no lugar de um retrato realista dos fatos, é fácil argumentar que as aspas de Gagarin são inventadas.

Mas, embora possam ter sido filtradas por censores, há uma boa chance de que sejam as palavras reais dele.

Piloto de combate que cresceu em um pequeno vilarejo russo, Gagarin era um homem de família benquisto.

Ele era bonito, agradável e, mais importante, um membro fiel de carteirinha do partido comunista.

Embora o passo a passo do primeiro programa espacial tripulado da Nasa, a agência espacial americana, tenha sido acompanhado pelo público, só recentemente veio à tona a história completa de como a União Soviética selecionou e treinou seus cosmonautas.

O império comunista fez questão de encorajar a visão de que a seleção estava aberta a todos, e que os primeiros homens enviados ao espaço — e a primeira mulher, Valentina Tereshkova — eram voluntários.

Mas isso não é bem verdade.

Depois de se qualificar como piloto de combate, Gagarin ficou baseado em um campo de pouso russo remoto na divisa com a Noruega, pilotando caças a jato MiG-15 na fronteira ocidental da Guerra Fria.

No fim do verão de 1959, dois médicos chegaram à base área para entrevistar um grupo pré-selecionado de aviadores.

Após começar com uma lista de cerca de 3,5 mil candidatos em potencial, os médicos restringiram sua busca a aproximadamente 300 pilotos em todo o oeste do país.

“Os caras que estão sendo entrevistados não têm ideia do por que realmente estão sendo entrevistados”, diz Stephen Walker, autor do livro Beyond, que passou anos vasculhando arquivos russos para contar a história completa da missão de Gagarin.

União Soviética investiu pesado no programa espacial, mas oficialmente ele não existia — Foto: Getty Images/BBC
União Soviética investiu pesado no programa espacial, mas oficialmente ele não existia — Foto: Getty Images/BBC

A entrevista consistia em um bate-papo aparentemente casual sobre carreira, aspirações e família. Alguns dos homens eram convidados então a uma segunda conversa.

Embora os médicos insinuassem que estavam procurando candidatos para pilotar um novo tipo de máquina voadora, em nenhum momento eles revelavam sua verdadeira motivação.

“Eles estão procurando pilotos militares, pessoas que já aceitaram a possibilidade de morrer por seu país, que é realmente do que se trata, porque as chances de voltar com vida não são necessariamente muito grandes”, explica Walker.

Enquanto a Nasa recruta pilotos de teste militares como seus primeiros astronautas a pilotar a complexa espaçonave Mercury, a cápsula soviética Vostok foi projetada para ser controlada remotamente a partir do solo.

Exceto em caso de uma emergência, os pilotos não chegariam a pilotar muito.

“Eles não estão procurando pessoas com muita experiência”, afirma Walker.

“O que eles estão procurando basicamente é uma versão humana de um cão — alguém que possa sentar lá e aguentar a missão, lidar com as forças de aceleração e voltar vivo.”

E assim como os cães espaciais que os cientistas de foguetes soviéticos vinham lançando ao espaço há mais de uma década, os cosmonautas teriam que estar em forma, ser obedientes e pequenos o suficiente para caber na cápsula apertada.

Número de integrantes da primeira turma de cosmonautas em potencial caiu para 20, incluindo Yuri Gagarin, o segundo da esquerda — Foto: Getty Images/BBC
Número de integrantes da primeira turma de cosmonautas em potencial caiu para 20, incluindo Yuri Gagarin, o segundo da esquerda — Foto: Getty Images/BBC

Por fim, 134 indivíduos selecionados — todos jovens pilotos com menos de 1,68 m de altura — tiveram a oportunidade de se “voluntariar” para esta nova missão ultrassecreta.

Alguns foram informados que seriam treinados para pilotar uma espaçonave, outros acreditavam que se tratava de um novo modelo de helicóptero.

Nenhum dos pilotos tinha permissão para discutir a oferta com seus colegas ou consultar suas famílias.

Em paralelo, em abril de 1959, os Estados Unidos anunciavam os nomes dos primeiros sete astronautas da Mercury.

Os candidatos foram submetidos a uma série exaustiva de testes físicos, médicos e psicológicos — detalhados no livro Os Eleitos, de Tom Wolfe (assim como no filme subsequente e na série de TV de mesmo nome).

Quando questionados em uma entrevista coletiva para a imprensa sobre qual dos testes eles menos gostaram, o então candidato a astronauta John Glenn respondeu:

“É difícil escolher um porque se você souber quantas aberturas existem no corpo humano, e quão longe você pode ir em qualquer uma delas… você responde qual seria a mais difícil para você.”

Mas, com tantas questões em aberto sobre como os humanos vão lidar com o rigor de um voo espacial — as acelerações, a ausência de gravidade e o isolamento —, havia todos os motivos para escolher os mais aptos física e psicologicamente.

O homem encarregado de testar os candidatos espaciais soviéticos foi Vladimir Yazdovsky, professor do Instituto de Aviação e Medicina Espacial de Moscou.

Ele já havia supervisionado o programa de cães espaciais e era descrito por colegas (privadamente) como um homem severo e arrogante.

“Ele é tipo um daqueles personagens aterrorizantes de James Bond”, diz Walker. “E é brutal com esses caras.”

Treinamento soviético teve menos ênfase em técnicas de pilotagem do que o da Nasa — Foto: Getty Images/BBC
Treinamento soviético teve menos ênfase em técnicas de pilotagem do que o da Nasa — Foto: Getty Images/BBC

Em quase todos os casos, os testes soviéticos eram mais longos, mais difíceis e mais rigorosos do que os enfrentados pelos astronautas americanos.

Ao longo de um mês, os candidatos foram injetados, examinados e espetados.

Eles foram colocados em salas com temperaturas elevadas a 70 °C, câmaras onde ficavam progressivamente sem oxigênio e assentos vibratórios para simular o lançamento.

Alguns candidatos desmaiaram, outros simplesmente desistiram.

Durante todo o processo, eles eram proibidos de contar a seus familiares e amigos o que estavam fazendo.

Mesmo naquele mês de testes, alguns ainda não sabiam para o que estavam sendo testados.

Por fim, 20 desses jovens foram aprovados para serem treinados em um novo centro de cosmonautas.

Mais tarde, o centro receberia o nome de Cidade das Estrelas, mas inicialmente era formado apenas por algumas cabanas militares em uma floresta perto de Moscou.

Não houve entrevista coletiva para a imprensa ou qualquer anúncio. Oficialmente, o programa de voos espaciais tripulados por humanos da União Soviética não existia.

Cosmonautas russos tiveram que passar por muitos testes semelhantes aos dos astronautas da Nasa, como o treinamento de gravidade zero — Foto: Getty Images/BBC
Cosmonautas russos tiveram que passar por muitos testes semelhantes aos dos astronautas da Nasa, como o treinamento de gravidade zero — Foto: Getty Images/BBC

“Se eles deixam a base, são orientados a não contar a ninguém o que estão fazendo, por que estão lá; se alguém perguntar, eles devem dizer que fazem parte de um time esportivo”, diz Walker. Tudo é controlado, tudo é segredo. Tudo acontece a portas fechadas.”

O programa de treinamento em si é semelhante ao dos americanos, mas com menos ênfase no controle da espaçonave.

Assim como os cães espaciais, os homens são girados em centrífugas com acelerações vertiginosas, lacrados em câmaras de isolamento à prova de som por dias a fio e submetidos a avaliações físicas e psicológicas quase constantes.

Uma diferença significativa em relação ao programa americano é a quantidade de treinamento de paraquedas que os russos receberam.

É que eles precisariam se ejetar de suas espaçonaves à medida que se aproximassem do solo para evitar serem gravemente feridos pelo impacto.

O fato de a cápsula e seu piloto pousarem separadamente é outro segredo que só seria revelado anos depois.

Com vários outros candidatos reprovados, um grupo inicial de seis cosmonautas é selecionado para os primeiros voos.

Após a Nasa declarar publicamente que espera lançar seu primeiro homem ao espaço na primavera de 1961, o chefe do programa soviético, Sergei Korolev, sabe que tem uma janela estreita de oportunidade.

Em 5 de abril de 1961, os cosmonautas chegaram ao que hoje é conhecido como Cosmódromo de Baikonur, no deserto do Cazaquistão, onde o foguete R7 de Korolev estava sendo preparado.

Naquele momento, nenhum deles sabia quem seria o primeiro a ser enviado ao espaço. Finalmente, apenas alguns dias antes do lançamento, Gagarin recebeu o aval.

Só depois de uma transmissão oficial, quando Gagarin está na órbita da Terra, que as pessoas, exceto as mais próximas do programa espacial, viriam a saber seu nome.

De acordo com Ostroumov, correspondente especial do jornal Izvestia, na manhã de 12 de abril, Gagarin deu “um último aceno aos amigos e camaradas lá embaixo [do foguete] e entrou na espaçonave, alguns segundos depois o comando foi dado… a gigantesca espaçonave se ergueu de uma nuvem de fogo em direção às estrelas”.

Ele voltaria à Terra como o garoto-propaganda da União Soviética — o piloto espacial eleito da Rússia.

G1