Festas de aniversário, confraternização entre amigos e reuniões de trabalho: o que era presencial antes da pandemia agora é um retângulo no Zoom. Pesquisa do Instituto Delete – que faz parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – aponta que 52,6% dos entrevistados instalaram novos aplicativos para aumentar suas atividades digitais. E 43,8% não tinham costume, mas passaram a fazer compras on-line em supermercados e farmácias, além de operações bancárias na internet, por causa das medidas de confinamento.
Anna Lucia Spear King, uma das responsáveis pela pesquisa que ouviu 870 pessoas entre 18 e 70 anos, também relata que mais da metade (51,2%) dos entrevistados percebeu alguma alteração emocional pela necessidade de fazer mais uso de plataformas digitais.
Celulares e redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram viraram um dos principais símbolos da década de 2010, e a relação entre bem-estar psicológico e excesso de telas começou a chamar atenção. Especialistas em tecnologia e saúde mental identificaram questões como:
- depressão, ansiedade: preocupações com o valor da imagem pessoal nas redes sociais, muitas vezes medido pela quantidade de likes em um post (por sinal: uma das razões para o Instagram ter escondido esse número)
- diminuição do poder de foco e concentração: raciocínio entrecortado por notificações e demais estímulos do celular
- sono prejudicado pelas luzes das telas e pelo consumo exacerbado de conteúdo: menos descanso para a cabeça
Mas sinais recentes vindos das pesquisas científicas foram contraditórios.
No ano passado, uma revisão de 200 estudos sobre a relação entre mídias sociais e bem-estar psicológico, conduzida por pesquisadores da Universidade de Stanford (EUA), apontou que a interferência de tecnologias sobre saúde mental é de 0,01 em uma escala onde 0,2 significa apenas um pequeno efeito – ou seja, praticamente zero de influência. Uma outra revisão de vários estudos (com foco em adolescentes), feita por uma equipe da Universidade de Oxford (Reino Unido), chegou a uma conclusão semelhante.
Quantas horas representam excesso?
Na comunidade científica fala-se agora em menos preocupação com a quantidade de horas totais e uma atenção maior ao tipo de conteúdo que está sendo consumido na internet.
Zoom, aplicativo de videoconferência, ganhou evidência na quarentena por possibilitar reuniões que antes eram presenciais — Foto: Albert Gea/Reuters
Oito horas divididas em cursos, projetos e pesquisas (por questões profissionais ou puro interesse amador) podem ter um efeito distinto no cérebro de uma jornada de oito horas dedicadas a redes sociais ou sites que formulam teorias conspiratórias sem apresentação de evidências.
Anna King, do Instituto Delete, defende que “a pessoa não tem um vício, ela tem um transtorno mental primário, uma ansiedade, uma depressão, uma compulsão”. Ela disse que são esses transtornos que levam cada pessoa ao uso excessivo das tecnologias. “Ela usa o celular para extravasar seus transtornos de origem.”
“Celulares oferecem luzes, cores, sons. É similar ao efeito de um jogo, libera substância como dopamina e serotonina no cérebro. Aí acrescente características individuais de cada pessoa, se já existe uma pré-disposição a ser compulsivo e ansioso. A pessoa não entende por que ela volta toda hora para o celular.”
Além do Delete da UFRJ, o Pro-Amiti (do Hospital das Clínicas de São Paulo) também oferece tratamento para quem desenvolve uma compulsão por celular e telas. Cristiano Nabuco de Abreu, coordenador da parte de dependências tecnológicas, concorda com a colega: “A gente sempre se debruçou no fato de que essas pessoas utilizam a tecnologia para regular o humor disfórico, para regular estados depressivos”.
Mas Nabuco de Abreu começa a fazer uma distinção entre uso por descontrole e uso por necessidade. “Você conversa com pesquisadores, jornalistas, pessoas que utilizam a tecnologia o tempo todo por necessidade e não é possível afirma que eles sejam simplesmente dependentes”.
Sobre o “abuso” de tecnologia na quarentena, o médico afirma que só “quando essas pessoas voltarem a ter uma vida normal é possível verificar se houve uma alavanca de um uso desordenado”.
Nabuco de Abreu, no entanto, observou um fenômeno curioso entre seus pacientes: os que já se excediam no tempo de celular sentiram uma espécie de saturação durante a quarentena. “Gerou repulsa em quem já abusava. A mesma plataforma que antes era fonte de diversão e entretenimento se tornou base para todo tipo de relacionamento: comercial, pessoal. Foi interessante perceber esse tipo de saturação.”
E no futuro?
“Essa experiência da quarentena vai impactar nossa relação com as plataformas digitais”, afirma o antropólogo Michel Alcoforado, sócio da Consumoteca, empresa que analisa tendências no mercado.
“Nos EUA se fala nesse efeito ‘zooming’ [do app de videoconferência Zoom], esse impacto na psiquê de tantas reuniões on-line. Eu faço muitas calls por dia e fico infinitamente mais cansado do que quando tinha reuniões ao vivo. É cobrado um nível de imersão gigantesco”, afirma.
Alcoforado acredita que vamos nos adequar à tecnologia, e não o contrário. “Esse processo de adaptação vai gerar uma mudança na nossa personalidade e na forma como nos relacionamos com o mundo”, diz.
“Teremos que lidar com os efeitos sobre o nosso cérebro, sobre o nosso aparelho psíquico, para aguentar a quantidade de calls e sustentar essa interação com as plataformas digitais que a gente está criando. É um desafio enorme.”
G1