Manaus está em colapso com o avanço dos casos de Covid-19: as internações e os enterros bateram recordes, as unidades de saúde ficaram sem oxigênio e pacientes estão sendo enviados para outros estados.
Lotados, os cemitérios precisaram instalar câmaras frigoríficas. Para frear o vírus, o governo do estado decidiu proibir a circulação de pessoas entre 19h e 6hna capital.
O G1 reuniu relatos de médicos, funcionários de hospitais e familiares de pacientes sobre a crise sem precedentes. Leia abaixo e assista à reportagem do Jornal Nacional:
Após comemorar a melhora no quadro de saúde da sogra, de 67 anos, que está internada em uma unidade pública de saúde, a psicóloga Thalita Rocha Thalita se viu em meio a uma situação que definiu em entrevista à BBC News Brasil como semelhante ao “fim do mundo”.
Por volta das 8h30, o oxigênio usado no local para ajudar pessoas com dificuldades respiratórias acabou.
“Foi horrível. Não desejo essa situação para ninguém. Foi uma cena catastrófica. Muitos pacientes idosos começaram a passar mal e ficaram roxos”, disse à BBC News Brasil.
O epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz do Amazonas, afirmou que os hospitais de Manaus viraram “câmaras de asfixia”. Segundo ele, a falta de oxigênio e a necessidade de fazer ventilação manual podem causar sequelas aos pacientes.
“Nós assistimos a parte dos hospitais de Manaus e das unidades de pronto-atendimento se transformarem em uma espécie de câmaras de asfixia, onde muitas pessoas perderam suas vidas, outras ficaram com oxigenação insuficiente, com ventilação manual, o que certamente pode resultar em sequelas gravíssimas.”
A vendedora Daniela Spener, de 58 anos, se desesperou ao ser informada sobre a transferência do tio, de 62 anos, para o Piauí.
“Por que não trazem as coisas que o Hospital precisa? […] Isso não tem lógica, vai ficar mais difícil dentro de um avião, longe da família, não sei onde”, disse.
A médica residente Gabriela Oliveira, do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), disse que a falta de oxigênio deixa os profissionais desesperados ao verem os pacientes agonizando.
“O que eu vivi hoje, nem nos meus piores pesadelos pensei que poderia acontecer. Não ter como assistir paciente, não ter palavras para acalentar um familiar. Isso é uma coisa que vai ficar uma cicatriz eterna nos nossos corações (…). Já não temos mais saúde mental para lidar com a situação que Manaus está enfrentando. Hoje acordamos no nosso pior dia, a falta do oxigênio em algumas instituições nos deixou desesperados. É muito angustiante a gente não ter o que fazer”, afirmou.
Um funcionário do Hospital 28 de Agosto contou que a falta de equipamentos e de oxigênio obriga as equipes a adotar procedimentos manuais para tentar manter os pacientes vivos.
“Em muitas ocasiões, a gente recebe paciente, entuba e fica ventilando na mão até arrumar um ventilador. Mas é complicado, porque até oxigênio está faltando.”
A cozinheira Michelle Viana perdeu o pai por falta de oxigênio no Serviço de Pronto Atendimento Dr. José Lins.
“Foi falta de oxigênio. Vocês não têm noção de como estava às 8h30 da manhã, a gritaria, era gente morrendo. Até os profissionais de saúde, estava todo mundo chorando.”
Cozinheira diz que pai morreu por falta de oxigênio em Manaus
O promotor Públio Bessa contou que carregou nas costas um cilindro de oxigênio para salvar o filho, internado há 3 dias na Fundação de Medicina Tropical.
“Eu tinha uma bala de oxigênio de 10 metros cúbicos, carreguei nas costas, entrei no hospital desesperado. Todos os médicos e enfermeiros sem condições de fazer absolutamente nada. A única solidariedade era o olhar de choro de todos eles.”
“Eu cheguei na hora exata, meu filho não tinha mais oxigênio, e consegui instalar a bomba de oxigênio dele”, completou.
Promotor de Justiça diz que carregou bala de oxigênio nas costas para salvar filho
O professor de educação física Walederson Brandão afirmou que precisou comprar um cilindro para não interromper o tratamento da mãe.
“O oxigênio foi parando, os pacientes foram agonizando nas macas e as enfermeiras não sabiam o que fazer. Acabamos de gastar R$ 450 com balas pequenas e R$ 1 mil com uma bala de 5 litros que vai durar 1h30″.
A técnica de enfermagem aposentada Solange Batista também precisou buscar um cilindro por conta própria para a irmã.
“Estou tentando correr atrás de alguém que encha o cilindro. Mas não é só a minha irmã. Graças a Deus a gente ainda pode comprar, mandar encher. Mas e quem não pode? Como fica? Tem muita gente morrendo. Muita gente. E cadê o governo?”, disse ela.
O médico Pierre Souza, especializado em pediatria e cirurgia geral, disse à BBC News Brasil que profissionais da saúde têm se revezado em “escala do ambu” — um rodízio para desempenhar a ventilação manual, que exige esforço e tem duração variada para cada paciente.
“Essa situação caótica muitas vezes exigiu passar noites inteiras ao lado do leito do paciente, fazendo uma escala do ambu, com colegas, técnicos e enfermeiros revezando por longos períodos — às vezes meia hora, uma hora, uma hora e meia.”
O governador do Amazonas, Wilson Lima, comparou a situação de Manaus a um cenário de guerra.
“Nós estamos em uma operação de guerra. Hoje, o oxigênio é o produto mais consumido diante dessa pandemia de Covid-19. Hoje, o estado do Amazonas está clamando, está pedindo por socorro.”
Venezuela
Principal fornecedora de oxigênio do governo do Amazonas, a White Martins informou que pretende buscar oxigênio na Venezuela.
Segundo a empresa, a demanda de oxigênio aumentou cinco vezes nos últimos 15 dias, alcançando um volume de 70 mil metros cúbicos diários. Esse volume equivale a quase o triplo da capacidade de produção da unidade da White Martins em Manaus.
O chanceler da Venezuela, Jorge Arreaza, disse no Twitter que colocou imediatamente oxigênio à disposição do Amazonas. Arreaza informou ter conversado com o governador Wilson Lima a pedido do presidente Nicolás Maduro. Lima respondeu, também na rede social: “O povo do Amazonas agradece”.
Racionamento
Acompanhantes de pacientes internados dizem que o Hospital 28 de Agosto está fazendo racionamento de oxigênio para prolongar os estoques. Assista ao relato abaixo:
Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas informou que as unidades de saúde operam com limitação de oxigênio e passaram a adotar um novo protocolo para “uso racional”.