Domingo de Páscoa dos americanos foi mais um dia de calvário, com 30 mil novos infectados e quase 2 mil mortos em 24 horas. Se os hospitais sobrecarregados aumentam a angústia da população, algumas comunidades são obrigadas a apostar na sorte. É o caso dos imigrantes ilegais, entre eles muitos brasileiros, que vieram armados de um sonho e estavam preparados para qualquer coisa, menos para uma pandemia.
Larissa – a real identidade de todos os ilegais foi preservada – atravessou a fronteira do México com o marido e o filho de 6 anos em novembro. Pensava que teria nos EUA uma vida melhor do que a que levava em Minas Gerais, onde trabalhava em uma plantação de café. Mas o sonho ficou para trás.
Logo na entrada, o marido ficou detido no centro de imigração e foi deportado há dez dias. Sem falar inglês, sem documentos, sem emprego, sem o marido e com o filho, Larissa sabia que seus dias não seriam fáceis quando chegou a Newark, mas não imaginava que estaria no epicentro de uma pandemia. “Viemos com a ideia de trabalhar e conseguir comprar uma casa. Deu tudo errado. Eu só choro”, afirma.
Newark fica no Estado de New Jersey, a cerca de 15 minutos do centro de Manhattan. Na última semana, Nova York viveu seus dias mais duros desde que o Estado passou a concentrar mais de 40% dos casos de coronavírus nos EUA – país que tem hoje mais de meio milhão de infectados e 22 mil mortos por covid-19.
Para o imigrante ilegal, enfrentar a crise é quase uma batalha perdida, porque muitos não têm plano de saúde, não falam inglês, sobrevivem de trabalho informal e, sem documentação regularizada, não terão ajuda do governo. Hoje, mais de 3 milhões de pessoas que vivem em Nova York são estrangeiros – 38% dos moradores da cidade. A estimativa é que 600 mil sejam imigrantes ilegais. No país inteiro, cerca de 11 milhões vivem ilegalmente, segundo o Pew Research Center.
No caso dos brasileiros, uma rede de apoio informal tem dado comida e apoio aos que precisam de ajuda. “A maior parte dos brasileiros da região não tem documento e está empregada no setor de serviços ou informal. É a comunidade que está sofrendo mais. A maioria não tem reserva financeira, ou tem para só um mês”, afirma Alejandra Merklen, do Grupo Mulheres do Brasil NY.
Morando de favor na casa da cunhada, Larissa é faxineira, ganha de US$ 60 a US$ 80 por dia de trabalho. Com a pandemia, o trabalho diminuiu, mas não parou. Apesar das recomendações das autoridades, algumas casas continuam a contratar diaristas. E ela nunca nega serviço. “Acho que os patrões não me passariam a doença. Antes de ir, a gente procura saber se eles estão passando mal. Se estivessem doentes, me avisariam”, diz.
Cinco meses depois de chegar aos EUA, Larissa está de malas prontas para voltar. Conseguiu pagar a passagem com doações e planeja partir nesta semana. O Consulado do Brasil em Nova York tem recebido pedidos de ajuda para providenciar documentação para brasileiros que querem ser repatriados.
Solange Paizante é coordenadora de uma das associações da região de Newark, a Mantena Global Care, que tem ajudado Larissa. Com apoio de Ruy de Almeida, empresário do setor imobiliário da região, a ONG distribui cestas básicas para famílias de brasileiros sem documentos e marmitas para os que não podem cozinhar.
“Muitos estão fragilizados. Vieram pelo México. Pai, mãe, crianças. Já chegaram com dívidas e no meio da pandemia. Eles estão passando muita necessidade. Gastaram tudo para vir para cá só com o sonho, como eu vim, como milhares vieram”, conta Solange, que aguarda o fim do processo para obter um green card. “Tem até brasileiro da Pensilvânia que veio para conseguir a cesta.”
Marta viajou de Belo Horizonte para os EUA há cinco anos. Grávida de sete meses, diz que seu maior medo sempre foi o de se contaminar durante a gravidez. Agora, ela se preocupa com o marido, que ficou desempregado com a paralisação do setor de construção civil. Ela estava na reta final para regularizar sua situação quando todo o atendimento, inclusive de órgãos de imigração, foi suspenso.
“Sem os documento, tenho medo de pedir assistência financeira do governo e isso prejudicar meu processo nas cortes de imigração”, diz Marta, em referência à ajuda de US$ 1,2 mil do governo americano. “Acho que teria direito. Mas, na dúvida, prefiro não arriscar.”
Tradutores
Nicole Silva é americana e filha de portugueses. Durante a faculdade de medicina, se envolveu em projetos voluntários com imigrantes brasileiros. Quando a crise do coronavírus começou, ela sabia exatamente do que as pessoas precisavam: ajuda em português para identificar a gravidade dos sintomas. “Aqui nos EUA não tem SUS, os imigrantes sem documentos não têm seguro de saúde. As pessoas têm medo de ir ao hospital, de ligar para o médico sem falar inglês. Estamos aqui para ajudá-las”, afirma Nicole.
Com mais quatro estudantes de medicina e enfermagem, ela passa por telefone orientações básicas sobre procedimentos em casos de suspeita de covid-19. Os pacientes são monitorados com ligações diárias. Se elas identificam que os sintomas estão se agravando, fazem a intermediação com um hospital e pedem a ambulância. O grupo começou os atendimentos telefônicos em 23 de março. Até quinta-feira, já tinham 50 nomes na lista – pelo menos quatro novos pacientes adicionados todos os dias.
A dificuldade de comunicação nos hospitais não é exclusiva dos brasileiros. Um aplicativo criado na época da crise da Síria para ajudar refugiados tem sido usado em Nova York para que pacientes infectados consigam ser tratados. O Tarjimly conecta voluntários dispostos a fazer uma tradução simultânea aos pacientes.
Andrea Eboli, também coordenadora do Grupo Mulheres do Brasil NY, se inscreveu como voluntária no aplicativo, que já tem 20 mil cadastrados ao redor do mundo. “Sabemos que a questão do imigrante não saber a língua local é um problema grande”, afirma Andrea.
Na semana passada, seu telefone tocou duas vezes. Na primeira, uma brasileira precisava fazer o cadastro de entrada no hospital, mas não entendia a ficha. Andrea conseguiu ajudar com uma ligação por vídeo. Na segunda, um paciente que falava espanhol tentava dizer ao médico o que estava sentindo e pediu ajuda por mensagem de texto. “É bem simples, bem rápido. Tenho certeza que ajudei pessoas. É uma revolução para o atendimento do imigrante.”
Michelly Carvalho, é de Vila Velha (ES) e mudou-se para os EUA aos 18 anos para trabalhar e fazer faculdade. Formada em ciências biológicas e estudante de enfermagem, ela faz parte do grupo coordenado pela portuguesa Nicole para atender brasileiros. Segundo Michelly, o passo inicial foi passar aos brasileiros as informações locais.
“Muitas pessoas na nossa comunidade não falam inglês e acabavam pegando as informações do Brasil. Queríamos ter a certeza de que todos aqui recebiam todas as informações passadas nos EUA, que são diferentes. Quando o governador dá alguma ordem executiva, por exemplo, traduzimos e postamos no Instagram”, afirma.
Renato mora em Newark há três anos. Carpinteiro, ele começou a se sentir mal quando suspeitou estar contaminado pelo coronavírus e procurou o pastor da igreja que frequenta para pedir ajuda. “Eu não falo bem o inglês e acho que nada substitui Deus. Ninguém melhor do que meu pastor para me orientar”, disse. Foi o pastor que colocou Renato em contato com o grupo de Nicole, que chamou uma ambulância para levá-lo ao hospital.
Agora, ele espera a fatura do atendimento. “Eu ainda nem olhei a caixinha dos correios. Acho que a conta já está lá. Médico aqui é muito caro. É diferente do Brasil. No Brasil, você fica doente e o SUS te atende. Aqui, se você for para um hospital, pode esperar que conta chega.”
Curado da covid-19, Renato acha que pode voltar à oficina de carpintaria nesta semana, apesar de os governos de New Jersey e Nova York não darem sinais de que a quarentena acabe nos próximos dias. Há 25 dias sem trabalhar, ele diz que está sobrevivendo graças a uma reserva financeira, que está prestes a acabar.
Hoje, Renato se apega ao fato de o governo de New Jersey ter incluído no pacote emergencial uma lei que impede o despejo de quem não paga aluguel. “Aqui, a lei funciona”, diz o brasileiro, que está há três anos nos EUA.
A fragilidade dos imigrantes ilegais diante do Estado, no entanto, faz com que organizações de apoio temam que, na prática, os que estão no país de forma irregular sofram ameaças de despejo – mesmo ao arrepio da legislação. “Muitas vezes, o locador usa do fato de o imigrante não ter documento para coagi-lo. Ele tem tanto medo de ser denunciado que não se apoia na lei”, afirma Alejandra Merklen, do grupo Mulheres do Brasil NY. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.