Um consórcio internacional de cientistas revelou nesta quarta-feira (12) a detecção do neutrino com a maior carga de energia já registrada, um avanço histórico no estudo dos processos mais extremos do nosso Universo.
Neutrinos são misteriosas partículas subatômicas quase sem massa e sem carga elétrica, capazes de atravessar qualquer matéria sem interagir com ela.
Justamente por essa característica “fantasmagórica”, os neutrinos são difíceis de detectar, mas também são valiosos para a astronomia, pois carregam informações diretas de suas origens, que podem estar em explosões estelares, buracos negros ou outros fenômenos extremos (entenda mais abaixo).
Mas esse neutrino em específico é tão energético que sua descoberta surpreendeu os cientistas. Ele tem uma energia inédita, muito maior que qualquer outro já observado (cerca de 30x mais), o que indica que sua origem está em algum lugar muito distante do espaço.
“Essa é a primeira vez que se observa um neutrino com essa energia, inédita até agora. Isso abre caminho para explorar uma nova faixa de energia e, possivelmente, uma nova classe de fontes de neutrinos”, disse ao g1 Paul de Jong, pesquisador da Universidade de Amsterdã e um dos porta-vozes do projeto.
O registro foi feito pelo telescópio de neutrinos KM3NeT, que está sendo instalado no fundo do mar Mediterrâneo.
“Os neutrinos são mensageiros cósmicos que nos ajudam a explorar os processos mais violentos do cosmos. Esta detecção nos leva um passo mais perto de entender esses eventos”, acrescentou Rosa Coniglione, outra pesquisadora do projeto.
Os resultados da equipe foram publicados na revista científica “Nature”, em um artigo que é capa da edição.
O grupo de mais de 250 cientistas, espalhados por 21 países e 68 instituições, apresentou a descoberta em coletivas de imprensa.
O KM3NeT, responsável pela detecção, é um experimento localizado no fundo do Mediterrâneo, com sensores instalados a mais de 3 mil metros de profundidade em águas próximas da costa da Itália e da França (veja IMAGEM abaixo).
A estrutura foi projetada para detectar a luz gerada quando os neutrinos de alta energia colidem com a água, permitindo que cientistas reconstruam sua trajetória e origem.
“A construção do KM3NeT ainda está em andamento, e mesmo com apenas uma fração dos sensores instalados, já conseguimos esse feito inédito”, explicou Aart Heijboer, físico do projeto.
Uma descoberta histórica
A detecção da partícula inédita foi divulgada agora, com a publicação do estudo, mas o evento de fato ocorreu em 13 de fevereiro de 2023, quando o detector ARCA, parte do KM3NeT, registrou o episódio incomum.
Na época, um neutrino de energia estimada em 220 petaelétronvolts (PeV) foi identificado, um valor cerca de 30 vezes maior do que qualquer neutrino já observado pela ciência.
Para se ter ideia, isso é algo bilhões de vezes mais potente do que a energia de um fóton (a partícula mais abundante do Universo) de luz visível, que é a luz que conseguimos enxergar.
Por isso, os pesquisadores acreditam que esse tipo de partícula pode ter vindo de fora da Via Láctea, possivelmente de um buraco negro ativo ou de um evento ainda mais raro.
Quando percebemos a energia e as características desse evento, e como ele se destacava dos demais, ficamos naturalmente empolgados, afirmou Paul de Jong, pesquisador da Universidade de Amsterdã e um dos porta-vozes do projeto.
Saiba mais
Essa suspeita acontece porque, ao viajar pelo espaço, os neutrinos têm uma característica única: eles seguem uma linha reta.
Diferente de outras partículas, como os raios cósmicos, que podem ser desviados por campos magnéticos, ou os raios gama, que podem ser bloqueados por poeira e gás, os neutrinos simplesmente não são afetados por esses obstáculos.
Mas o que chamou atenção nesse caso foi o fato de que o neutrino detectado no Mediterrâneo viajava em uma trajetória quase horizontal, algo pouco comum pois, geralmente, os neutrinos seguem trajetórias mais verticais, produzidos por raios cósmicos na atmosfera terrestre.
Contudo, no caso do neutrino KM3-230213A, como foi apelidada a partícula, sua trajetória tinha uma inclinação de apenas 0,6° acima do horizonte, sugerindo que ele percorreu uma distância muito maior através da crosta terrestre do que o esperado para neutrinos de energia tão alta.
Seu registro aconteceu enquanto ele atravessava a plataforma continental de Malta, uma região do fundo do mar onde a água é mais rasa, próxima à costa da ilha.
Segundo os cientistas, a explicação mais provável é que, ao seguir essa linha quase reta, o neutrino tenha atravessado uma camada significativa de matéria, como rochas ou água, antes de ser detectado pelo telescópio subaquático, que utiliza grandes volumes de água ou gelo para capturar essas partículas enigmáticas.
Quando um neutrino interage com a matéria, ele gera partículas que se movem a quase a velocidade da luz e emitem uma luz azul brilhante ao passar pela água ou gelo.
Essa luz então é registrada por sensores, permitindo que os cientistas reconstruam a energia e a direção do neutrino, ajudando a rastrear sua origem no espaço.
O que é um neutrino?
Os neutrinos são partículas elementares produzidas em reações nucleares, como as que ocorrem no nosso Sol e em explosões estelares.
Ao contrário de outras partículas, contudo, eles interagem muito pouco com a matéria, atravessando planetas e estrelas sem serem detectados.
E isso os torna bastante desafiadores para os cientistas, mas também bem úteis para estudar eventos astronômicos distantes.
“Como os neutrinos não possuem carga elétrica, não podemos usar campos magnéticos para focá-los. Eles simplesmente atravessam tudo que veem pela frente. Desta forma, quando produzidos em um fonte, seja o Sol, buracos negros ou outros astros, eles carregam essa informação da fonte até nós, ansiosos para detectá-los e colher essa informação”, explica o físico Farinaldo Queiroz, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e pesquisador do Serrapilheira, que não teve envolvimento com o projeto.
O primeiro telescópio de neutrinos grande o suficiente para detectar esses fenômenos cósmicos foi o IceCube Neutrino Observatory, localizado no Polo Sul, na Antártida.
Após mais de dez anos de observações, o IceCube reuniu fortes evidências da existência dos neutrinos cósmicos, registrando uma energia impressionante em um único evento.
O feito revelou fontes possíveis para a emissão de neutrinos, tanto na nossa Galáxia quanto em várias galáxias em formação estelar, explicando cerca de 15% dos sinais observados. No entanto, a origem dos outros sinais ainda é um mistério.
G1