Poucas séries de TV representam tão bem o multiculturalismo francês e mundial como a nova “The Eddy” da Netflix. Na minissérie de oito episódios, dá para escutar, em um intervalo de minutos, inglês, francês, polonês e árabe – no mínimo.

O drama “The Eddy” conta a história de Elliot, pianista americano famoso que vive em Paris, onde abriu um clube de jazz com seu sócio Farid. Lá, terá de lidar com seu passado obscuro e com um crime que colocará o clube em risco. Ao mesmo tempo, lida com sua filha adolescente, Julie. Os episódios focam em Elliot e sua família, mas também em outros personagens, como Farid, a cantora Maja e o baixista Jude.

A criação partiu do roteirista Jack Thorne (“National Treasure”, da Hulu) e do musicista Glen Ballard, ganhador de seis prêmios Grammy e que já produziu Alanis Morissette, Aerosmith e Michael Jackson. Quatro diretores dividem produção e direção dos oito episódios: Houda Benyamina, Damien Chazelle, Laïla Marrakchi e Alan Poul.

O mais jovem diretor a levar o Oscar de Direção, Chazelle, claro, não poderia fugir de um projeto envolvendo jazz. O gênero musical é sua paixão confessa e ele mesmo já tocou bateria em uma banda. Além disso, três dos quatro filmes que dirigiu trazem o jazz como tema. O primeiro foi “Guy and Madeline on a Park Bench”, filmado quando ainda era estudante em Harvard. Depois vieram “Whiplash” e “La La Land”, ambos grandes hits de bilheteria e crítica. Seu próximo filme, “Babylon”, previsto para 2021, se passará na Hollywood dos anos 1920. Não é difícil de imaginar como será a trilha sonora.

Todas as caras da França

A série mostra a efervescência da cena musical francesa (jazz, rap francês e batidas tradicionais africanas se misturam de maneira magnífica, assim como o canto religioso árabe vira música) e o caldeirão cultural de suas ruas, onde franceses e imigrantes, franceses brancos e franceses nascidos de pais árabes ou africanos convivem, nem sempre no melhor dos termos. É uma tendência atual.

Em filmes franceses clássicos dos anos 1950 e 1960, como em “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, e “Acossado”, de Jean-Luc Godard, Paris é branca. Isso mudou. Filmes franceses atuais não conseguem contornar o tema da convivência problemática entre aqueles que se consideram “mais franceses” e os imigrantes que têm outras religiões que não a cristã. Hoje, cerca de 6% da população francesa é muçulmana, por exemplo. Não há como falar da França sem falar dessa convivência, pacífica e violenta. Tampouco não dá para ignorar a desigualdade, mesmo no país que tem a sexta maior economia mundial.

Filmes recentes, como “Os Miseráveis” (2019), de Ladj Ly, “Dheepan” (2015), de Jacques Audiard, ou “Entre os Muros da Escola” (2008), de Laurent Cantet, exploram a Paris da periferia e dos imigrantes, de intenso contraste com a Champs-Élysées, predileta dos turistas. “The Eddy” vai pelo mesmo caminho e revela uma realidade onde a beleza da música e das ruas turísticas pode conviver com violência e preconceito.

Os quatro diretores optaram pelo realismo, pela abordagem documental da Paris de 2020, e por refletir o multiculturalismo no elenco. Os músicos da banda do clube “The Elliot” não são atores profissionais, sim músicos na vida real. Assim, prepara-se para sessões de jazz de alto nível durante os episódios. Já as atores vêm de todos os cantos do mundo. O americano André Holland (“Moonlight”) interpreta Elliot, enquanto a polonesa Joanna Kulig (“Guerra Fria”) interpreta Maja e o francês de origem argelina Tahar Rahim (“Um Profeta”) interpreta Farid.

O tom documental do seriado também veio da filmagem, em parte, com filme 16mm, o que dá um efeito granulado e mais orgânico . É uma conquista e tanto de Chazelle. É que a plataforma de streaming tem uma regra: desde 2014, todas as suas produções originais precisam ser filmadas em 4K UHD (ultra HD), de modo a garantir que, mesmo com o passar dos anos e a constante popularização das TVs em UHD, a qualidade das imagens continuará alta. Não mais que 10% do conteúdo pode ser filmado em outra qualidade que não 4K. Mas a plataforma cedeu diante das credenciais de Chazelle e ele e os demais diretores puderam filmar 25% do seriado em 16mm.

Amandla Stenberg e André Holland em cena de "The Eddy"

Jazz para as novas gerações

“Jazz é liberdade”, diz Joanna Kulig, atriz polonesa de 37 anos que interpreta a cantora Maja e que vive relação conturbada com Elliot, mas encontra em Julie uma amiga confiável.

Kulig é um dos principais nomes do cinema polonês contemporâneo e já uma estrela internacional. Ela esteve, por exemplo, em “Ida”, filme de 2013 do diretor Pawel Pawlikowski que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Mas foi ao estrelar “Guerra Fria” (2018), do mesmo diretor, que ela conquistou Cannes, Hollywood e qualquer outro festival que tenha visitado. O filme – e sua atuação – foram sucessos absolutos de crítica. “Guerra Fria” acabou indicado a três Oscars (Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Diretor, Melhor Fotografia).

Em “Guerra Fria”, sua atuação como Zula, uma cantora humilde que conhece o músico Wiktor nos anos 1950, chamou a atenção de Damien Chazelle, que a chamou para “The Eddy”.

Por telefone, EXAME conversou com Joanna Kulig. Confira:

Dois de seus projetos mais recentes como atriz envolvem música. O filme “Guerra Fria” e agora “The Eddy”. Em ambos você interpreta uma cantora. Isso foi uma coincidência ou foi você quem buscou projetos que envolvessem música?

Na verdade, os dois projetos estão interligados. Foi por causa de “Guerra Fria” que acabei fazendo “The Eddy”. O Damien Chazelle, que já estava planejando a série, viu o filme em Los Angeles e gostou do meu trabalho. Ele ligou para meu agente americano e depois nos encontramos em Santa Mônica para discutir minha participação. Ele queria checar pessoalmente que eu conseguia falar em inglês e francês para poder interpretar Maja.

Você tem formação em piano e canto e se apresentou como cantora antes de começar a atuar. A música sempre fez parte de sua vida. Como isso mudou seu modo de trabalhar em “The Eddy”?

Esse conhecimento musical prévio me ajudou muito. Meu diálogo com os músicos da banda, por exemplo, era muito mais fácil. Não tínhamos tanto tempo para ensaios e preparação musical, então tudo ficou mais ágil, eu sabia criar com eles. O desafio era unir esses dois mundos, o da atriz e o da musicista.

Como eram os ensaios para as cenas, principalmente as cenas musicais?

Os atores da banda são músicos na vida real, mas não atores profissionais. Então havia a questão de treiná-los para atuar. O Chazelle propunha exercícios de atuação com os músicos e todos participávamos. Mas não havia uma exigência para atuações “perfeitas”. A ideia era que tudo ficasse mais natural, documental, vivo. Os diretores nos incentivavam a improvisar nas cenas, não precisava fazer exatamente igual em cada tomada. Aliás, é da essência do jazz esse improviso, essa liberdade.Joanna Kulig, atriz da série "The Eddy" Joanna Kulig, atriz da série “The Eddy”

Exame