Em 2019, a violência contra os 305 povos indígenas brasileiros aumentou de maneira sistêmica, segundo relatório divulgado nesta quarta-feira (30), pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a entidade aponta que houve recrudescimento em 16 das 19 categorias de agressões, que incluem racismo, expropriação de terras indígenas e omissão do poder público.
As categorias são enquadradas em três grandes grupos, que são “Violência contra o patrimônio”, “Violência contra a pessoa” e “Violência por omissão do poder público”. Entre as categorias que mais chamam a atenção, está a de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, em que se verificou um salto de 109 para 256 casos, na passagem de 2018 para 2019. As ocorrências atingiram 151 terras indígenas, 143 povos, em 23 estados.
O aumento foi constatado também em outras cinco categorias: conflitos territoriais, que passou de 11 para 35 casos; ameaça de morte, que subiu de oito para 33; ameaças várias, que foi de 14 para 34 casos; lesões corporais dolosas, que passou de cinco para 13; e mortes por desassistência, que subiu de 11 para 31 casos.
Durante a live de lançamento do relatório, representantes do Cimi falaram da relação que existe entre as várias formas de violência, de como o governo também contribuiu para as violações e de como as agressões são consequência das disputas por terra.
Para a antropóloga e professora Lucia Rangel, uma das organizadoras do estudo, a publicação deixa claro que a população indígena “vem sendo esbulhada, desrespeitada, expropriada, massacrada”. “As demarcações [de terras indígenas] foram proteladas. Esse governo, antes de assumir, já na campanha, prometia que não ia demarcar nenhuma terra indígena e, de fato, não só não demarcou, como também devolveu à Funai [Fundação Nacional do Índio], processos de demarcação, para engavetar ou questionando, e não demarca nem demarcou nunca mais”, disse ela.
A antropóloga comentou os procedimentos administrativos de regularização de 27 terras indígenas que foram enviados do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para a Funai, sob a justificativa de que deveriam ser revisados com base na tese do marco temporal. Em maio deste ano, o encaminhamento foi questionado pelo Ministério Público Federal (MPF), que entendeu que iria de encontro à interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. O marco temporal estabelece que os povos indígenas têm direito somente a áreas que já estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada.
Ao todo, o Cimi contabilizou 1.120 casos de violência contra o patrimônio dos povos indígenas, dos quais 829 casos foram de omissão e morosidade na regularização de terras; 35 de conflitos relativos a direitos territoriais e 256 de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Os autores do relatório frisam, ainda, que, das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência do Estado que impede que o processo demarcatório seja finalizado. Destas 829 terras, 536 (64%) não teve nenhuma providência adotada pelos entes públicos.
Violência contra a pessoa
Já no capítulo sobre violência contra a pessoa, constam 276 casos, soma superior ao dobro da registrada em 2018, que foi de 110. A maioria foi de assassinatos (113), ameaças várias (34), ameaça de morte (33) e tentativa de assassinato (24). Também entram na contagem episódios de abuso de poder (13), homicídio culposo (20), lesões corporais dolosas (13), racismo e discriminação étnico cultural (16), além de violência sexual (10).
Algumas unidades federativas têm lidado com quadros mais agudos de violência. No ano passado, informa o Cimi, foram denunciados casos de tortura de crianças indígenas, em Mato Grosso do Sul.
“A enorme repercussão nacional e internacional do assassinato de Paulo Paulino Guajajara, a partir de uma emboscada feita por invasores na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, em novembro de 2019, expôs, mais uma vez, que a situação de tensão naquele estado atinge níveis alarmantes. Invadidos e saqueados há décadas, os territórios tradicionais do Maranhão refletem uma realidade que se espalha e se agrava em todo o país”, lembra o Cimi.
Presente na transmissão de lançamento, Lenice Paulino Guajajara, irmã da vítima, afirmou que a comunidade sente, até hoje, que vive sob ameaças. “Até quando vai isso?”, questionou. “A gente não dorme direito.”
Omissão do poder público
Outro aspecto abordado no relatório é a violência por omissão do poder público, que se aplicou à classificação de 267 casos em 2019. A categoria considerou 133 suicídios de indígenas, 32 a mais do que o total registrado em 2018.
Identificou-se, ainda, um aumento na mortalidade infantil (crianças até 5 anos). Em 2018, o total de casos era de 591, crescendo para 825 em 2019. Os estados com maior quantidade de registros foram Amazonas (248), Roraima (133) e Mato Grosso (100).
Também foram relacionados 65 casos de desassistência geral, 66 de desassistência na área de educação escolar indígena, 85 de desassistência na área de saúde (85) e 20 de disseminação de bebida alcoólica e outras drogas. A falta de acesso a atendimento de saúde custou a vida de 31 pessoas. Conforme esclarece o Cimi, parte dos números tabulados pode estar subnotificada, como acontece com o índice de assassinatos, fornecido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Para o coordenador do Cimi Regional Sul, Roberto Liebgott, também organizador da pesquisa, o que está em curso, atualmente, é uma “política genocida do Estado”. Citando como exemplo a área de saúde indígena, ele pontuou que isso tem surgido, inclusive, como restrições à participação da sociedade civil. “Houve um bloqueio na relação do governo com o sistema, no aspecto da participação indígena no controle social. Os povos foram afastados desse subsistema, alijados, e deixaram de exercer a participação no planejamento das ações, nas fiscalizações das ações”, ponderou.
A Agência Brasil solicitou aos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente posicionamento sobre as declarações dos representantes do Cimi e as denúncias feitas no relatório e aguarda retorno. Os demais pedidos de esclarecimentos ficam, segundo o governo, a cargo da Funai, que também não encaminhou resposta à reportagem até o fechamento desta matéria.
Agência Brasil