Em 2002, quando era vereador em São Paulo, o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki apresentou um projeto de resolução que retirava uma homenagem aos bandeirantes que existe no interior do Palácio Anchieta, sede da Câmara Municipal paulistana.

Esculpida numa parede de mármore, uma frase diz que São Paulo, “a vila de Anchieta e Nóbrega”, cresceu e se expandiu graças aos “aventurosos bandeirantes”, que ampliaram as fronteiras do Brasil “à busca do ouro, índios e diamantes”. A homenagem existe desde que o Palácio Anchieta foi inaugurado, em 1969.

— A referência ufanista aos bandeirantes e ultrajante aos indígenas tem origem numa visão ultrapassada que temos da história. Os bandeirantes foram genocidas — afirma Bonduki. — O meu projeto não foi aprovado. Na época, não havia mobilização contra estátuas e nomes de logradouros públicos que fazem homenagens históricas questionáveis. Hoje é diferente.

Parede de mármore na Câmara Municipal de São Paulo com dizeres que exaltam bandeirantes por escravizar indígenas na época da Colônia (Foto: Câmara Municipal de São Paulo)

O arquiteto e urbanista se refere à recente onda de derrubadas e tentativas de derrubada de estátuas de personagens do passado escravista ocorrida nos Estados Unidos e na Europa. O movimento ganhou força na esteira da morte do segurança negro americano George Floyd, que foi asfixiado por um policial branco em maio, na cidade de Minneapolis.

A imagem das estátuas caindo no exterior chegou ao Brasil e despertou o debate sobre o que fazer com monumentos que homenageiam personalidades ligadas ao colonialismo, à escravidão negra, ao genocídio indígena e à ditadura militar.

Na avaliação do arquiteto e urbanista, porém, não basta simplesmente retirar as estátuas do espaço público. É preciso que se faça também uma ampla discussão pública a respeito das personalidades homenageadas.

— Trata-se de um processo educativo. É fato que os brasileiros conhecem pouco a própria história.

Bonduki foi secretário municipal da Cultura (2015-2016) e duas vezes vereador (2001-2004 e 2013-2016). Escreveu o livro Intervenções Urbanas na Recuperação de Centros Históricos (Iphan). Atualmente, é professor titular de Planejamento Urbano na Universidade de São Paulo (USP).

A seguir, trechos da entrevista concedida à Agência Senado:

O arquiteto e urbanista Nabil Bonduki (Foto: Elza Fiúza/ Agência Brasil)

Agência Senado – Como o senhor avalia o recente movimento que pede a retirada de estátuas de personalidades que escravizaram negros e indígenas?

Nabil Bonduki – Já passou da hora de deixarmos de homenagear personagens desse tipo. Numa linha semelhante, a prefeitura de São Paulo tem um programa chamado Ruas de Memória, que modifica o nome de ruas, praças, pontos e viadutos que reverenciam torturadores e violadores dos direitos humanos. Em 2016, por exemplo, o nome oficial do Minhocão passou de Elevado Costa e Silva [o segundo presidente da ditadura militar] para Elevado João Goulart [o presidente deposto pelo golpe de 1964]. Em ações desse tipo, no entanto, não basta simplesmente mudar o nome da rua ou retirar a estátua da praça. É preciso que antes se faça um debate público a respeito da mudança.

Minhocão, via de São Paulo que foi rebatizada como Elevado João Goulart, em homenagem ao presidente deposto em 1964; nome original era Elevado Costa e Silva, em referência ao presidente da ditadura militar (Fotos: Rovena Rosa/Agência Brasil e Governo do Brasil/ Galeria de Presidentes)

Por que o debate é necessário?

Em primeiro lugar, a retirada das estátuas precisa fazer parte de uma política pública. Não se pode improvisar. É necessário que seja algo pensado e organizado. Em segundo lugar, o debate público é essencial para que fique claro para a sociedade por que a estátua está sendo retirada, qual foi o papel negativo que essa personalidade desempenhou na história e por que ela não deve ser homenageada. As pessoas precisam entender o motivo, até mesmo para diminuir as resistências e oposições. Estamos num momento de grande polarização. Se não houver embasamento histórico sólido, a situação pode acabar acirrando os ânimos. Quando retiramos estátuas de escravagistas ou bandeirantes sem dar as devidas reflexões e explicações, podem surgir pessoas no sentido contrário [exigindo que se retirem estátuas que homenageiam escravos ou indígenas massacrados]. Trata-se de um processo que também é educativo. É fato que os brasileiros conhecem pouco a própria história. Basta ver que aqui em São Paulo as pessoas em geral não sabem por que as movimentadas Avenidas Rebouças e 23 de Maio têm esses nomes [o engenheiro Antônio Pereira Rebouças Filho projetou importantes ferrovias no século 19 e foi irmão do abolicionista André Rebouças; em 23 de maio de 1932, a morte de quatro estudantes foi o estopim da Revolução Constitucionalista]. A imprensa e a escola desempenhariam um papel importante nesse processo educativo envolvido na retirada de estátuas.

Os historiadores também precisam participar, não é?

Sem dúvida. Vejamos a história dos bandeirantes. Por anos e anos, ensinou-se na escola o papel heroico dos bandeirantes, os grandes desbravadores deste imenso e selvagem território brasileiro. Muitos de nós, por isso, hoje se recusam a aceitar que os bandeirantes cometeram as mais terríveis atrocidades contra os indígenas, incluindo escravização e massacre. A glorificação dos bandeirantes foi, na realidade, uma construção deliberada que começou no fim do século 19, no esforço que a elite paulista do café fez para forjar uma identidade própria que ajudasse a legitimar o seu projeto de poder. Os bandeirantes, então, foram apresentados como os heróis paulistas que construíram o Brasil na época da Colônia. O genocídio indígena, claro, foi habilmente ocultado. Essa imagem idealizada dos bandeirantes voltou na época da Revolução Constitucionalista de 1932, em que o estado de São Paulo enfrentou o governo federal, e voltou também em 1954, na esteira das comemorações do quarto centenário da cidade de São Paulo. No presente, não temos mais essa visão romantizada. Conseguimos enxergar claramente que os bandeirantes perpetraram o genocídio de povos indígenas.

Site do jornal The Guardian noticia derrubada, em junho, da estátua de Edward Colston, comerciante inglês de escravos dos séculos 17 e 18, localizada em Bristol (imagem: reprodução)

A história, então, é passível de revisão?

A história está em constante revisão, em constante construção. É claro que existem fatos históricos e eles são inquestionáveis, mas a interpretação desses fatos varia conforme o momento, conforme o presente. É o presente, com os seus valores, que gera a interpretação do passado. À medida que o tempo avança, a visão que temos dos fatos históricos também se modifica. Atualmente, ao contrário do que acontecia antes, a sociedade se preocupa com os indígenas. E vê que eles continuam sendo massacrados, ainda que de formas diferentes daquelas do passado. Nada mais natural que agora passe a reagir de outra maneira ao tratamento que era dado aos indígenas dos tempos coloniais. Pelo mesmo raciocínio, nada mais natural que agora se retire dos bandeirantes o papel de heróis. Atualmente, o Vale do Anhangabaú, em São Paulo, está em obras de revitalização e existe um movimento para que se erga no espaço reformado uma estátua que faça referência à população negra do Brasil.

O que seria feito das estátuas retiradas dos espaços públicos?

Destruí-las, como se chegou a fazer no exterior, não é o melhor caminho. Seria um ato violento e suscitaria ainda mais violência. Não se deve tentar apagar o passado. Revisar a história é uma coisa; negá-la é outra coisa completamente diferente. As estátuas dos bandeirantes, por exemplo, poderiam ir para museus, onde seriam explicadas e problematizadas. Nos museus, o público entenderia quem foram eles e por que em determinada época foram transformados em heróis. No lugar das estátuas retiradas, poderiam ser colocadas outras que homenageassem justamente as vítimas daquelas personalidades anteriormente representadas no mesmo local. A estátua do bandeirante Borba Gato que existe em São Paulo, por exemplo, poderia ir para um museu e ser substituída pela estátua de um indígena guarani. Isso não tem nada a ver com amnésia histórica. Pelo contrário, tem a ver com lembrar o passado e também com repensar a forma como homenageamos as pessoas. No caso do Monumento às Bandeiras, que fica na entrada do Parque do Ibirapuera e é muito significativo para a cidade de São Paulo, acho que não deveria ser retirado, mas sim trazer informações históricas contextualizadas, para que as pessoas entendam quem foram os bandeirantes.

Monumento às Bandeiras, do escultor Victor Brecheret, em São Paulo: papel histórico dos bandeirantes em debate (Foto: Wilfredor/ Wikipedia)

Nesse processo, o que o Poder Legislativo pode fazer?

Na esfera municipal, o Poder Legislativo pode discutir e aprovar leis que impeçam que personagens históricos que cometeram crimes sejam homenageados com estátuas e nomes de logradouros públicos. Na esfera federal, o Poder Legislativo pode organizar debates sobre esse tema em audiências públicas, que teriam repercussão nacional e poderiam despertar os municípios para essa questão e dar-lhes um norte. Em 2002, quando eu apresentei o meu projeto de resolução pedindo a retirada da homenagem aos bandeirantes do prédio da Câmara Municipal de São Paulo, ainda não existia uma mobilização em torno da questão. Hoje existe. Vejo que, depois de todo aquele calor que se viu [em junho] na esteira de derrubadas e retiradas de monumentos nos Estados Unidos e na Europa, as discussões deram uma arrefecida nas últimas semanas. As pessoas agora estão preocupadas com questões mais urgentes. Mas o tema das estátuas entre nós ainda não está resolvido. É algo que certamente vai voltar. Estamos às vésperas de 2022, quando vamos celebrar o segundo centenário da nossa Independência. É um momento bastante oportuno para revermos a história nacional.

Fonte: Agência Senado