Não se sabe por quanto tempo Pandora perambulou pelas ruas de Goiânia, com fome e com seus oito filhotes mortos dentro dela, causando uma grave infecção. Faz dois anos, entretanto, desde o dia em que Janine Rodrigues, ao pilotar sua moto numa tarde ensolarada, avistou a cadela, em passos lentos, cair no meio do asfalto, sem força alguma para reagir.

Cenas como essas, entretanto, não são casos isolados. Hoje, Organização Mundial da Saúde (OMS) estima a existência de outros 30 milhões de animais, entre gatos e cachorros, abandonados no Brasil. Diferente da maioria dos casos, Pandora teve um final feliz. Apesar de ter falecido há duas semanas, ao ser encontrada por Janine – que, na época, não hesitou em bloquear a rua e gritar por socorro para que alguém a ajudasse a levar Pandora a uma clínica veterinária – teve a oportunidade de viver de forma saudável por outros dois anos completos após a retirada dos fetos.

Muito foi noticiado sobre o aumento da adoção de animais durante a pandemia. Especialmente, houve estudos – como o do Journal of Veterinary Behavior, que coletou 1,3 mil respostas durante três semanas de isolamento – que enxergaram na convivência com animais de estimação a existência de diversos benefícios à saúde, desde o início do isolamento, em março de 2020.

No entanto, com o passar dos meses, o que se viu foi uma alta ainda maior de abandonos. “É vergonhoso. A situação agora é de muito abandono e isso é triste, porque a única coisa que aquele animal abandonado tem na vida é o dono”, diz Janine Rodrigues, profissional de marketing que no Abrigo Casa Verde, em Goiânia, desde sua fundação, há quatro anos.

Durante a pandemia, o shih tzu Bartolomeu foi resgatado pelo Lar de Recuperação Amigos do Tofu, criado em 2012. Com sarna e diversas feridas que lentamente eram comidas por larvas, Bartolomeu, ainda com outro nome, era mantido preso no fundo do quintal por seu ex-dono, que temia que o cão contaminasse sua esposa e filha com a doença.

Depois de muita luta, a fundadora do abrigo, Ivonete Vieira, conseguiu pegá-lo, tratá-lo e fazer com que o animal fosse adotado. Segundo ela, no último ano, os casos de resgate por abandono e maus-tratos foram inúmeros.

Carlos Filho, que é designer e participa da associação de resgate de animais Vida Lata, explica que esse aumento de pedidos de resgate, desde a primeira restrição de atividades, em março de 2020, tem relação com a maior visibilidade que os animais receberam. “Sem pessoas nas ruas, o que se viam eram os animais. Muitos gatos e cachorros que eram alimentados por donos de restaurantes, idosos e outras pessoas da comunidade, ficaram sem lugar para onde ir”, conta.  

“Muita gente mal-informada acha que o animal pode pegar Covid-19 e transmitir a eles, muitos abandonos foram por isso e, inclusive, muita gente me ligou pedindo que eu recolhesse seus animais, por estarem com medo”, explica Ivonete.

Segundo a vereadora de Goiânia, Lucíula do Recanto (PSD), diretora do Recanto dos Anjos Peludos, criado há 18 anos, a alta de resgates de animais abandonados foi de quase 40% e entrou em grande contraste com a queda de demanda por cães e gatos a serem adotados. Hoje, o abrigo conta com seis funcionários e quatro voluntários que cuidam de cerca de 500 cães e 80 gatos.

Lucíola explica que a maior parte dos resgates ocorre via denúncia de maus-tratos de animais em residências, lotes fechados e abandonados e de rua. “Não tendo condições de atender a todas as denúncias, quando as recebemos, priorizamos aqueles animais que estão em piores condições, como os abandonados, doentes, que foram espancados e que realmente precisam de um socorro. Nós nos juntamos às autoridades responsáveis, com a Polícia Militar ou a Guarda Civil, e vamos até o local, porque se for feito o flagrante o autor do crime já é preso imediatamente”, conta.

Indignada, Janine diariamente se revolta com essas atitudes. “As pessoas pensam que abrigos são lugares de desova, de abandonar animais na porta. Não são. Quem tem um abrigo não é obrigado a pegar algo de que as pessoas estão se livrando”, desabafa. E é clara ao ressaltar a importância da responsabilidade daqueles que decidem adotar animais domésticos. “Se cada um tivesse consciência de cuidar do pet que adotou e zelar até o fim, os abrigos não estariam superlotados. É inadmissível colocar um animal para fora de casa para que ele se vire sozinho na rua. A rua é um lugar muito triste. Sentir fome e sede é muito triste. É preciso ter consciência”, esclarece.

Falta de recursos e consequências da pandemia
A vereadora Lucíula acrescenta que a situação atual do abrigo atualmente é caótica. Devido ao cenário de crise, no qual o desemprego e as incertezas predominam, o abandono dos animais é a primeira atitude a ser tomada por muitos, infelizmente.

“O abandono aqui na porta (do abrigo) é muito grande. Quase todo dia colocam animais lá, principalmente ninhada de filhotes de gato e cachorro”, acrescenta Lucíola. Além do aumento do abandono e da diminuição de demandas por adoções, ela diz que as ajudas também diminuíram. “As pessoas simplesmente pararam de ajudar, porque estão vivendo com prioridades. E a prioridade com animais não cabe no orçamento”, diz.

Para a presidente e fundadora da associação Anjos da Rua, Simone Alves – que desde 2018 é responsável por captar recursos, fazer ações sociais em prol ajudar os abrigos e protetores independentes cadastrados na instituição e apoiar a população vulnerável que não tem condições de vacinar ou castrar seus animais –, a pandemia agravou o cenário que antes já era preocupante. “Criei o Anjos da Rua sozinha, porque sempre me incomodei com o excesso de animais que moram nas ruas. Isso se trata de um problema ambiental, porque esses animais de rua podem transmitir zoonoses [doenças infecciosas capazes de ser naturalmente transmitidas entre outros animais e seres humanos]. Não é apenas uma questão apenas de maus-tratos e tristeza sobre a dor dos animais. Hoje, sobram desafios e faltam recursos”, pontua.

O Vida Lata, que resgata animais, mas não possui espaço físico para abrigá-los, trabalha com lares temporários, e também sentiu o impacto direto da pandemia. “Quando resgatamos os animais e o tratamos no veterinário, precisamos direcioná-los a lares temporários, que são super importantes no período de recuperação. Só depois disso, são feitos os processos de adoção. Com a pandemia, as pessoas ficaram mais em casa e tivemos maiores dificuldades em conseguir ir fazer a vistoria dos locais para alocarmos os animais aos lares, por exemplo”, menciona Carlos.

Simone, que também é consultora de empresas, conta que, por todo esse cenário, para arcar com as dívidas da associação, muitas vezes precisa tirar dinheiro de seu próprio bolso. Ela explica que, antes da pandemia, alguns microempresários eram parceiros dos Anjos da Rua e realizavam doações mensais que variavam de R$ 100 a R$ 300 cada. Hoje, as doações que não foram completamente canceladas, foram reduzidas significativamente, para valores de R$ 10 a R$ 50.

Hoje, a captação de recursos do projeto é feita de forma completamente online, por meio de rifas, feijoadas e galinhadas beneficentes. Entretanto, mesmo essas doações reduziram. “Agora, por exemplo, estamos fazendo uma rifa para pagar uma dívida de R$ 1,5 mil que temos com uma clínica veterinária, mas até agora só vendemos R$ 300 em rifa, mesmo ela estando aberta há dois meses”, conta.

Apesar das doações terem diminuído, os pedidos de ajuda aumentam todos os dias. Simone diz que, em média, 20 pessoas a contatam diariamente solicitando socorro a animais abandonados e machucados. “Muitas vezes levamos os animais para serem hospitalizados e receber os cuidados necessários e acabamos ficando com dívidas, só que enquanto não pago uma dívida em uma clínica, por exemplo, não tenho como assumir outra. Ficamos receosos, porque não existe garantia que vou conseguir pagar as dívidas”, detalha.

Como ajudar?
Além da importância das doações, sejam elas em dinheiro ou em outros tipos de suprimentos, como rações, Simone ressalta a crucialidade de as pessoas compartilharem com as pessoas que conhecem, pelas redes sociais, a situação dos abrigos e da própria associação. “Para quem não tem condições financeiras, de doar nem que seja R$ 2, as pessoas podem ajudar compartilhando nosso trabalho. Às vezes, um único compartilhamento pode trazer cinco novos voluntários para doarem. As pessoas muitas vezes ignoram isso, mas a divulgação é muito importante para que possamos dar continuidade a essas ações”, sugere.

A adoção responsável, nesse momento, também se mostra importante. No Recanto dos Anjos Peludos, para adotar, a pessoa precisa se deslocar até a ONG pessoalmente e ser escolhida pelo animal. “Quem chega lá acaba sendo escolhido. É uma forma de democratizar todas as adoções. Indo lá, as pessoas conhecem a realidade do abrigo e acabam adotando cães de pelagem preta, mutilados e outros que muitas vezes são rejeitados no momento da adoção”, explica Lucíula.

Contatos das associações entrevistadas

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